No 3º encontro do grupo BS2: um diálogo formativo editado.
Para que se possa aprofundar a organização da presença é necessário aprofundar seu lugar no plano do acontecimento.
Acontecimento é o estado de coisas em seus devires, ambientes dentro de ambientes, onde o corpo, em seu também devir, está imerso como parte do mesmo em seu ato de existir. Acontecimento é o que é contemporâneo às ações de um corpo pelas quais modela o seu prosseguimento em particular.
Acontecimento é o fora, o dentro e o fora do fora, em sua interação e simultaneidade. O acontecimento é uma configuração temporal.
O Acontecimento é feito de simultaneidades, muitas camadas, ecologias físicas, afetivas, sociais, antropológicas, culturais, históricas, tecnológicas, políticas, de poderes e valores… Podemos chamar o acontecimento também de campo corpante (bodying-field, expressão utilizada com grande propriedade por Stanley Keleman, autor de Anatomia Emocional).
Cada um de nós é um lugar, um aqui. (consulte o nosso artigo Um corpo na Multidão).
Para começar a aprofundar e organizar melhor esse lugar, organize um fora, só isso. O que acontece quando você organiza um fora?
O dentro, o fora, o fora do fora… como você absorve o fora do fora?
Como o seu fora absorve, transporta o efeito do fora do fora para o dentro?
Seu fora esboça um certo design que é uma resposta a este estímulo ou afetação, a este acontecimento do fora do fora, criando a transposição do fora do fora para o dentro, ou seja, o fora organiza um certo design que é uma alteração na membrana entre o dentro e o fora do fora.
Isso se chama comportamento.
Trata-se de uma anatomia particularizada, um design vivo, que em si é uma resposta, que em si é uma configuração entre o dentro e o fora do fora, uma configuração do fora que organiza as partes de um certo modo.
Posso, por exemplo, fazer uma experimentação com o meu fora.
Quero afinar o meu ouvido para sintonizar melhor com esse ruído que me chega e captar melhor que melodia é esta que um martelo esta produzindo, neste momento, no andar de cima.Vou me organizar nesta forma de escuta fina como um todo. E em seguida desorganizar.
Parou.
Começou de novo.
O que eu faço com o interior da minha cabeça? Como eu modelo a escuta ou como me modelo para escutar? É um modelar-se que a gente descobre que é muito antigo… esse modo de isolar o dentro do fora do fora… Se você tocar uma minhoca você vai ver como ela se engrossa para se proteger. Esse engrossar e voltar-se em direção a si mesmo é muito antigo e se faz à minha revelia. É uma ação reflexa, um movimento sobre si mesmo, que altera a forma do corpo. Mas eu posso usar a minha condição de animal corticalizado para exercer uma ação sobre isso.
Parou o martelo.
O que eu fiz? Talvez esteja ainda com o aqui, eu Regina, meio duro para me preparar para a próxima martelada.
Mas eu vou afinar, intencionalmente, de novo as minhas paredes e me expor ao susto da próxima martelada. Quero ver como é. Isso me educa. Quero ver como é.
Capto a minha resposta. Que resposta dei à martelada? Como se desencadeou essa resposta muito antiga aqui?
Como é a forma do seu fora? O que se contraiu em você com estas três marteladas que acabam de irromper? Alguns podem estar sentindo um acumulo de excitação e talvez sintam nos braços, nas pernas, impulsos de sacudir para mandar embora esta irritação. A gente pode fazer a experiência de tentar descarregar com os braços e ver o que acontece.
O fora não é só o que a gente enxerga, são todas as paredes que envolvem as passagens pulsáteis, as organizações do pulso que mantêm este pulso funcionando do fora para dentro, do dentro para fora. Até o fim do dia a gente vai passar grandes momentos sem escutar o martelo. E depois quando chegar em casa vamos perceber certas estruturas estressadas porque ficaram imobilizadas para bloquear o ruído.
(V. Bomba pulsátil em Anatomia Emocional)
Tudo isso é um design construído no continuum da minha história formativa. São variações possíveis dentro da minha forma. Temos um número imenso de variações, mas são variações em cima da minha forma contemporânea ao acontecimento, escultura anatômica em camadas da minha história formativa.
A gente pode voltar e perceber como este aqui está, não só pulsante quanto habitado por palavras, por imagens, por impulsos de ligação entre as pessoas, entre os corpos, entre os assuntos, o dia. Este aqui é sempre habitado.
Antes de fazer uma afirmação a partir desta configuração do aqui que eu estou captando, eu posso fazer um somagrama. O somagrama é um registro gráfico dessa superfície, destas zonas. (clique no link para conferir a definição)
Faça um somagrama, como exercício.
A gente pode experimentar fazer duas operações, agora: uma é compartilhar – como é o que é – e outra é problematizar.
Vou dar um nome para isso que a gente está fazendo: dar corpo à experiência ou CORPAR.
VIVER
INIBIR a continuidade do desencadeamento de formas,
DESACELERAR.
REPETIR A FORMA SELECIONADA PELA INIBIÇÃO
ANOTAR /POSTURAR/DESENHAR…
de algum modo fixar o fluxo por um momento,
A gente pode começar, metodicamente: a gente já viu pelo próprio desenho que ao INIBIR a continuidade do fluxo de formas em seu desencadeamento contínuo, faço uma borda sobre o acontecido.
Acabamos de colocar uma borda sobre o acontecido.
Como fiz o que fiz? Que acontecimento é este que está dentro desta borda? O que aconteceu? O que quero trazer de volta pra cá e representar para mim? Ou para o outro?
Ao colocar uma borda, posso começar a agir sobre essa forma.
O destino dos corpos é prosseguir, eles nascem para desencadear formas, mas também nascem com equipamento para moldar esta relação com o vivido, com o dentro, com o fora,com o fora do fora, estabilizando, agregando repertórios e formando tecidos ao longo da jornada maturacional de cada soma.
Podemos transformar o vivido em experiência em vez de deixar o vivido apenas escorrer ou nos traumatizar. Nossa herança genética humana permite que se criem alças do vivido sobre si mesmo e se transformem algumas respostas em corpo, em formas que são muito preciosas para nossa adaptação. Isso não é luxo, é uma finura adaptativa.
Quanto mais eu refino a expressão da minha forma, mais finamente eu me conecto com o presente e com o acontecimento.
Há formas que acontecem à minha revelia e formas que acontecem com a minha participação. O trauma acontece à minha revelia. Aprendizagem, com a minha participação. Esta é a diferença. O trauma se instala a partir de um reflexo do tronco cerebral. A aprendizagem se instala a partir de um trabalho cortical, neuromotor, sobre o vivido.
Quando habitamos a forma, a anatomia da presença, temos contato com o pulso que preenche essa forma. O pulso não é só uma constatação mental. O pulso é o ritmo digital do presente captado na operação de presentificar-se.
A gente está sempre problematizando como construir bordas, como me mover de uma superfície para outra, como estabilizar bordas, como suportar bordas.
Problematizar permite encontrar uma adaptação mais fina para a estrutura que a gente capta no presente.
A gente é capaz de se autonarrar, eu sou aquela que… Mas o funcional está em reeditar-se, sempre de maneira mais límpida, checando o encontro do corpo com as condições presentes… não é bem assim… atenção…
A clínica é isso, trabalhar junto para atualizar a sua forma, a sua narrativa de si e seus modos vinculares, presentificando-se e promovendo sustentação de presença no campo corpante junto com seu paciente.
Aluna: Organizar um fora criou sensação de bem estar, boa, eu organizo o dentro e parece que surge espaço para as trocas, cria buracos para acontecerem as entradas e as saídas. Quando você falou para pensar no fora do fora veio uma sensação do muito, de opressão, o corpo todo fica pequeno e contraído, tira a sensação de bem estar, o maxilar ficou rígido, querendo morder, foi difícil sair desta sensação.
Regina: São muitas as formas do reflexo do ataque… várias estruturas preservadas pela evolução através das quais os animais operam o ataque. O maxilar é poderoso, o masseter é o músculo mais forte do organismo, a mordida tem a força para a imobilização da fonte do perigo, o maxilar é um ancestral da mão. Antes da mão já havia maxilar. Entre os peixes, quando surge o maxilar para a preensão da caça, isso transforma os peixes que têm maxilar nos grandes poderosos dos oceanos. Antes de surgir essa articulação, os peixes só chupavam o ambiente e engoliam diretamente… não mordiam.
Aluna: agora, falando e fazendo ao mesmo tempo, me dá uma sensação de presença muito forte.
Regina: Quando a gente se habita como forma, como anatomia, as camadas se apresentam, as históricas e as comportamentais. Você pode ampliar a presença do maxilar para as mãos e para os pés, para as extremidades da excitação,
Aluna: parece que a energia vai para fora.
Regina: intensificou, espalhou
Aluna: cria um bem estar enorme.
Regina: isso se chama atualização de si, aumento de potência, possibilidade de usar a si mesma de maneira mais ampla. Quanto mais você usa de si, mais você se identifica com a lógica única do seu funcionamento.
A invenção da membrana é tudo. Membrana como regulador do pulso.
A relativa separação, a regulação do pulso que bombeia o acontecimento-ambiente para dentro e para fora, um bombeamento do acontecimento sendo espremido, processado e projetados no ambiente como resposta, do micro ao macro, um concerto de partes produzindo um processamento maior. A parede corporal repete o modelo da membrana celular.
Estado de parede, longe, perto, misturado, denso, ameaçado, invasivo.
O estado de parede nos dá de volta o sentido de imagem corporal. Por aí, posso apreender como faço o que faço… como eu faço presença? me afastando, com medo, invadindo, misturando… como eu faço? Para isso, muita atividade aqui, pouca aqui… é uma geografia mótil. Essa captação permite essa definição. O tempo todo a gente está captando o que está fazendo. É como os corpos se regulam.
Podemos fazer isso mais finamente, intencionalmente. É dessa configuração do intensivo em nós que sabemos o que estamos vivendo. É de dentro da minha forma que tenho a experiência de ser quem eu sou, de fazer o que faço e como faço.
Pulsos, vários pulsos coexistindo, num concerto pulsátil e excitatório.
Todas as células, todos os tubos transmitindo em ondas, todos os órgãos e tecidos em seus formatos presentes, num conjunto de varias frequências ao mesmo tempo, tocando a música silenciosa do acontecimento, maravilhosa, de cada organismo. Evidências zen… experiências imediatas.
Consigna: Organize um fora.
Como é organizar um fora? Como você faz para organizar um fora? Isso é um know how importante porque não é apenas um estado meditativo. É necessária a lentificação para organizar um fora, é uma delimitação de um aqui onde estou processando acontecimento.
Meu estado de forma contemporâneo a este acontecimento, um aqui no processo formativo mais amplo, imerso e processando um acontecimento onde sou produtor e participante.
Organize um fora. Captar a forma do que a gente faz não é simples, mas é tudo para estar presente e é tudo para ter potência na presença. Captar o que a gente faz e como a gente faz é tudo que a gente precisa para ter potência na presença. (diferente de observar ou ter consciência).
A membrana é a mediação, uma configuração entre o dentro e o fora do fora.
A resposta diz respeito ao momento. Mas a resposta é o que a minha forma pode dar, é uma construção histórica que faz com que eu capte e responda segundo essa expressão.
E a alteração sobre isso (si) é lenta. O tempo constrói e cria uma forma dentro de uma continuidade. A gente tem um modo de fazer as coisas e ir se constituindo. A forma capta, responde e organiza uma resposta ao mesmo tempo. Não é simples só pensar isso, porque é profundamente anatômico: pensar-corpando.
Faça um fora. Faça o seu fora. Muito difícil a gente chegar ao fora da gente, não este fora de sentir, organize o seu fora. E quando a gente torna um pouco mais nítido muscularmente o fora, ele fica um pouco mais nítido como desenho mental. O cérebro capta melhor a forma e isso chama propriocepção, é uma captação de sentido, não apenas mecânica. Porque a forma em si tem uma inteligência, a inteligência do seu funcionamento. Que forma é esta? É uma forma que tem um sentido, a forma da minha presença, a forma através da qual me presentifico, ela contém o meu estar vivo, a minha pulsação e regula o tanto e o como estou em conexão com o acontecimento.
Fora não é só aparência. Fora é uma contenção que mantém as paredes que sustentam os pulsos de uma certa maneira. A sinfonia dos pulsos em mim me transmite o que estou vivendo, a qualidade da experiência.
Neste pulso do tórax, por exemplo, onde as paredes estão organizadas de um certo jeito, está interpretado de modo pulsátil e digital o acontecimento do fora do fora.
Posso não só organizar como também desorganizar a configuração do meu fora. Passo a passo. E mudar de canal.Quando você faz atualizações sobre a sua forma, você prossegue, você desencalha da forma conhecida, do design de fazer o mesmo e você introduz diferença e continuidade. A forma dá forma ao fora do fora: recorta e interpreta.
A elaboração da questão da presença permite que a gente administre nossas ecologias, se responsabilizando por mantê-las vivas, numa elaboração conjunta, tateando, contribuindo para a manutenção e prosseguimento. O que é estar vivo, ser parte de um ambiente?
Como a lentificação da sequência das nossas formas ensina para os músculos, para o sistema nervoso, para a excitação? A gente está ensinando para si mesmo como estar e constituir ambientes. Evidentemente, é com a maior facilidade que a gente é pressionado a tirar cartas da manga e resolver correndo situações e com isso a gente perde a oportunidade de ser parte do acontecimento.
Presença é uma questão de sintonizar músculos e sistema nervoso, se dar conta da nossa forma e com isso a gente começa a se conceber como uma anatomia única, singular, nossa, e com isso posso ter acesso a quem estou sendo, o que estou fazendo, para que não esteja à mercê das forças. Que não são apenas naturais, mas são forças fortíssimas de manipulação da nossa produção de corpo. E nesse sentido, o que estamos fazendo é aprender que regras são essas a partir das quais o corpo se produz e que método é este que permite que eu capte como é, o que é e que eu possa atualizar mais a minha forma e a narrativa de mim a respeito do presente.
Forma presença, postura ereta, são organizações anatômicas – tubos, bolsas, tubo profundo, médio e superficial, um diafragma que é o rosto que capta, que faz contato com outros rostos.
Aí eu me capto intensificado, eu capto a minha forma, quem estou sendo hoje, quem estou deixando de ser, a tendência da minha forma, quem estou me tornando. Isso que me facilita produzir mais de mim, de uma maneira atual.
O que me dificulta produzir mais de mim? As dificuldades que a gente está encontrando de estar aqui e agora hoje, estas dificuldades são as minhas dificuldades formativas de prosseguir, prosseguir formando mais de eu mesmo com aquilo que o corpo secreta de si para prosseguir.
Confusão, excesso de atividade mental, dificuldade de conectar imagens com ações, muita informação e dificuldade de conectar estas informações de maneira própria são algumas das muitíssimas dificuldades que podemos identificar.
Como faz,como seleciona, como encarna, como leva adiante uma vida singular, como suporta tanto desafio, como suporta tanta oferta de informação e sentido?
Como a gente reconhece a dificuldade que a gente está tendo agora de estar presente? Como a gente reconhece isso como parte dos nossos padrões formativos?
E quando a gente aprende a associar a presença finamente com uma certa organização muscular de conter a si mesmo, de conter a vida em si mesmo, a gente ganha a potência de prosseguir se sentindo parte. A grande dificuldade é atribuir à presença esta qualidade totalmente física, totalmente anatômica, totalmente real. Estar na realidade. O ambiente, quando a gente se liga nele, excita. A gente capta e isso produz um aumento de excitação. É o começo do co-corpar com o ambiente e atualizar presença.
Com este estado de forma, então, eu recorto, eu capto: a mim, ao ambiente, a própria forma, ao mesmo tempo captando acontecimentos internos, movimentos viscerais, senso de viscosidade que não é mecânico, em absoluto, mas é carregado de vivência, difícil de dar nome.
E como aquilo que eu vivo arrasta associações… cada presente arrasta associações de imagens, de pensamentos, de projetos, de passados, de outras cenas, de linguagem. E como a linguagem afeta os corpos e os corpos atraem linguagem?
Isso tudo, quando contemplamos e consideramos, nos enche de um senso de mistério…
Somos, em nosso design, uma bomba pulsátil, uma máquina de estar no acontecimento, de ser parte do acontecimento, uma máquina autopoiética que se constrói com o acontecimento e com as próprias respostas ao acontecimento, uma bomba pulsátil que como as medusas, fica oca e enche, fica oca e enche, suga o ambiente e esvazia, suga o ambiente e se esvazia, do mesmo modo que o coração se enche de sangue e bombeia, enche o vazio de sangue e espreme.
É o vácuo que atrai o ambiente para dentro. Encher-se do ambiente, esvaziar-se, expressar-se, propulsionar-se. Nadar na excitação. Os corpos nadam na excitação do acontecimento. E a minha forma responde ao acontecimento, influi no acontecimento, recorta o acontecimento, capta o acontecimento, forma com matéria do acontecimento.
Quanto mais a gente suporta se preencher de excitação do acontecimento e manejar esse estado, mais a gente exerce potência formativa.
Regina Favre
Março, 2012