Atenção: Regina Favre está no especial Simplifique, transmitido no GNT (canal 41 NET/SKY). Infelizmente não recebemos a informação de quando iria ao ar a tempo.
A próxima reprise será sexta, dia 20 às 09h30.
O programa traz muitos depoimentos, inclusive da monja Cohen, e é bastante interessante. Em breve, edição do making-off, registrado pelo Chico, aqui no site.
Regina no Especial Phillips no GNT
Diálogos: Rogério e Regina
Esta é uma longa conversa, que já dura 15 anos. Neste pequeno vídeo, Regina sintetizou os pontos-chave para a compreensão do pensamento formativo. O texto, editado por Beto Teixeira, está aqui.
Regina e Rogerio: fragmentos de uma conversa de 15 anos
Quando comecei o estudo e tradução dos livros de Keleman, em l990, senti de imediato a necessidade de compreender as raízes evolutivas de sua concepção formativa do corpo absolutamente única.
Rogerio Sawaya já era, naquela ocasião, um médico experimentado, um obstetra, introdutor no Brasil do Método Leboyer de parto, filho de um grande biólogo brasileiro. Assim, Rogerio tinha uma grande intimidade, desde casa, com a vida e seus processos e, mais tarde, com as pesadas leituras científicas as quais, para mim sozinha, seriam inacessíveis.
Por uma feliz coincidência, quando nos encontramos pela primeira vez, ele estava a procura de um sentido mais profundo para seu interesse no estudo do corpo, que estivesse além do olhar médico. A amplitude e profundidade do olhar de Keleman em relação à vida ao qual o introduzi, tiveram um efeito desconcertante sobre ele.
Esse foi o começo de uma troca real e produtiva, que se mantém viva e em movimento até hoje
Os fragmentos apresentados a seguir foram extraídos de registros em vídeo de aulas de Rogerio em meus Seminários sobre Anatomia Emocional. Foram coletados por Beto Teixeira, em suas notas de aula e em transcrições de vídeos do grupo no qual ele funciona como “ escriba” e fotógrafo, e editados por Rogerio e por mim.
Beto é bailarino, terapeuta corporal, estudante, colaborador e pesquisador dedicado da minha transmissão kelemaniana.
Regina Favre
Regina: Ao ler, compreender e trazer para nossas vidas a Anatomia Emocional, construímos profundamente um sentimento de sermos parte de um processo maior, de não sermos indivíduos isolados, algo “em si mesmo”. Esse estudo nos possibilita, também, sentir que compartilhamos de um pulso universal, presente desde o Big Bang há cerca de l5 bilhões de anos atrás. Os inputs trazidos por Rogério para nosso estudo contribuem¸ gradualmente, para estimular e alargar nossas possibilidades de auto-reconhecimento como anatomias evolutivas e, consequentemente, aprofundar nossas possibilidades de auto-manejo.
Rogério: No final do processo de seleção pré-vital no planeta, a vida apareceu. E quando surge, a vida fez “recortes no ambiente” particularizando um ambiente interno, pequenos oceanos individualizados. Nessa ocasião, a vida criou a membrana celular. Em cada célula que apareceu desde então, há mais de 3 bilhões de anos atrás – seja ela uma célula primitiva, como uma bactéria ou uma célula moderna, como as que constituem nosso corpo – é sempre uma membrana que garante sua individualidade.
Pela presença dessa membrana, a célula protegeu-se desde o início da competição de moléculas do ambiente. A célula contém em seu centro os ácidos nucléicos – RNA e DNA – que, até alguns anos atrás, eram considerados apenas como as moléculas que contém o código hereditário. Atualmente, há uma compreensão mais ampla: os ácidos nucléicos expressam as características hereditárias codificando a síntese de proteínas estruturais, essenciais para a formatividade celular.
Nas células mais primitivas – procariócitos – não existia um núcleo como nas células modernas. O RNA e o DNA delas permaneciam livres e diluídos no citoplasma tornando-se vulneráveis à ação competidora de moléculas da vizinhança. A célula moderna, eucariócito (eu = própria, karion = núcleo) inventa um núcleo com membrana dupla – a estação celular central – onde se aloja o código hereditário que garante a base da formatação funcional, assim como que a vida possa se replicar e prosseguir.
Outra coisa essencial que a vida criou desde o aparecimento das células são os ribossomas, centenas de milhares de minúsculos órgãos celulares, micro-indústrias que manufaturam as proteínas do corpo. É nos ribossomas, por exemplo, que células glandulares produzem, a insulina do pâncreas. De maneira análoga, eles produzem no sistema imunológico os anticorpos, uma variedade de proteínas que protege o organismo vivo de invasores.
Esta é uma visão básica e muito simplificada da célula, protótipo de todo organismo vivo tal como descreve Keleman em sua Anatomia Emocional.
A membrana celular é constituída de uma dupla camada de moléculas de gordura especiai. Essa membrana é altamente seletiva: não é qualquer substância que é capaz de atravessá-la, do interior para o exterior ou vice-versa.
Existem micro-canais proteicos que atravessam a membrana e alcançam o interior da célula, capazes de selecionar o que entra ou não em seu ambiente interior. Esses micro-canais abrem-se ou fecham conforme as necessidades vitais das células.
A célula pulsa, expandindo e contraindo, concentradamente dentro de sua membrana elástica tal como todos os organismos vivos em toda a escala evolutiva até nós.Esse é o paradigma da Anatomia Emocional kelemaniana.
Durante o período inicial da evolução, a vida – através de infinitas tentativas e com seu elevado poder morfogenético – começou a produzir seres unicelulares, protótipos de sistemas celulares complexos que prosseguiram evoluindo até os seres multicelulares, altamente elaborados, do nosso nível macro. Mesmo em alguns unicelulares, já se delineava uma boca primitiva para capturar partículas nutricionais da vizinhança e um protótipo de tubo digestivo. Em outros, cílios na superfície da membrana celular batiam de modo sincronizado para promover o deslocamento no ambiente. Uma pré-figuração de um micro-sistema neuro-motor, portanto, já estava presente nessa ocasião.
A vida, dessa maneira, em seu impulso formativo, tentou repetidamente, diversificou-se e atingiu um limite com os seres unicelulares. Para continuar a explorar eficazmente o ecossistema, a vida conectou células-irmãs com células-irmãs formando colônias como, por exemplo, as esponjas marinhas. Colônias multicelulares tornaram-se mais complexas e aprenderam a fazer uma divisão de trabalho, com a finalidade de captar melhor as reservas energéticas e nutricionais do ambiente. Esse conjunto de eventos vitais foram sempre dirigidos pela seleção natural darwiniana na qual as formas mais aptas prosseguem.
Regina: Gostaria de falar à respeito do conceito de fitness que, acredito, teve uma interpretação errada , sendo identificado apenas como a lei do mais forte. Mais fitness não é somente ganhar a competição por espaço e alimento. É também, e principalmente, ter mais capacidade para fazer conexões com os ambientes, sejam estes grandes ou pequenos. Nessa visão, podemos considerar que naquele momento da evolução, as formas unicelulares que sobreviveram foram aquelas com mais conectividade e capacidade para juntarem-se em colônias.
Rogério: Fitness tem que ser entendida também como uma das características fundamentais para a continuidade e difusão da vida: ser mais complexo, ter uma complexidade biológica crescente não apenas em sua forma corporal mas também em suas estratégias para adaptação ao ambiente. É óbvio que um grupo de células que se une e efetua uma divisão de trabalho tem um grau maior de complexidade, favorável à construção de uma sociedade em adaptação.
Regina: Em inglês o verbo “ to fit “ significa estar na medida certa, como um pé cabe num sapato e vice-versa. É a fitness mútua, a conectividade de formas, aquele que se encaixa. Desde o início do impulso vivo, acredito, há o problema de encaixe ou não. Está presente a situação de cooperação, da reunião de forças para produzir algo no e com o ambiente.
Rogerio: É sempre a interação. Em qualquer nicho ecológico interação é fundamental e necessária para formar e manter a organização e complexificação de qualquer sociedade celular.
Regina: Podemos ver isso no caso da molécula de carbono, auto-selecionada na natureza como a mais eficaz na produção da química dos compostos orgânicos, exatamente por sua alta capacidade de conexão. A idéia de algo que conecta em cooperação é muito interessante. Conectando em cooperação ou desconectando em competição: isso é a outra face da mesma moeda. Separação ou união, competir ou cooperar, mas sempre relacionado a alimentar mais, a produzir mais vida e, portanto, conseguir energia para que os processos vitais celulares prossigam, construir com mais potência as redes vivas.
Rogerio: Mais vida, mais capacidade para formar, com mais potencial para sobreviver, alimentar-se e reproduzir. Nesse processo surgiu uma evidente vantagem: a vida ganhou condição para explorar áreas dos nichos ecológicos até então inacessíveis a ela.
Regina: O investimento da vida prossegue selecionando formas com a capacidade de se auto-sustentarem e de reagir às forças de entropia – formas de vida selecionadas que resistem às forças da desorganização no ambiente.
Rogerio: Isso significa que a vida continua a experimentar e criar diferenciações nesses organismos, favorecendo suas próprias forças de sustentação contra as tendências homogeneizantes do ambiente. A vida é auto-formativa na medida em que enfrenta desafios, mantendo-se num equilíbrio dinâmico. Ao proceder assim ela garante a singularidade de sua forma no interior do ambiente que continuamente tenta absorver o ser vivo para o caos primordial da entropia.
Regina: Aqui temos duas idéias. Primeira, manter essa capacidade de auto-construção a partir de si mesmo e do vivido, alimentando um processo interno. Segunda, a idéia de uma clausura operacional – como diz Francisco Varela similarmente a Keleman – em que a membrana protege um funcionamento interno totalmente individual, onde processos auto-poiéticos ou auto-construtivos tem lugar. Há permeabilidade, há passagens, mas tudo muito bem regulado para garantir que esse funcionamento aconteça e mantenha a si mesmo em equilíbrio dinâmico.
Podemos encontramos a idéia de precisão máxima nessa viagem ao interior do micro que você está proporcionando a nós. Inicialmente, podemos avaliar a dimensão da força que dispara a si mesma no universo com o evento do Big Bang – percebemos que essa é a mesma força que vem se diferenciando na expansão do universo e se diferenciou em cada organismo no processo evolutivo da biosfera. A partir desse ponto, podemos ver que a vida tem um potencial fantástico para expressar e criar gradualmente aquilo que se cabe ou adapta-se(fits), mais conectividade e mais capacidade para cooperar. O outro aspecto importante é como essa organização precisa está presente nos mínimos detalhes também sempre em auto seleção segundo o critério de mais funcionalidade em rede. Essa compreensão pode ser estendida ao self, aos diferentes ambientes, à interação entre os corpos e as pessoas. É maravilhoso começar a compreender Keleman a partir deste ponto de vista. Penso que essa é uma pré-condição para conseguirmos um melhor aproveitamento deste livro, Anatomia Emocional, tanto do ponto de vista contemplativo como do operacional.
Ao longo das leituras veremos o “aumento de excitação que requer mais forma”: formas que se organizam a si próprias para serem capazes de dar suporte a mais interações e operações internas, capazes de percorrer mais etapas em termos de organizar a excitação em formas e ações e, assim, poderem expandir e estabelecer mais conexões.
Em termos de biosfera e ecossistemas, formas mais simples compõem-se com formas mais complexas. Nem tudo precisa ser complexo. Bactérias, por exemplo, tem se mantido como formas simples por muito tempo, funcionando bem e cooperando com o sistema. Existem outras formas, porém, que seguiram uma linha de complexificação e que dispõem de um amplo espectro muito mais amplo de ação e conexão. Neste caminho evolutivo, as formas mais simples continuam interagindo em diferentes níveis, continuamente, com as formas mais complexas.
Rogerio: É isso mesmo! Concordo com você. Bactérias existem há mais de 3 bilhões de anos (fósseis delas foram encontrados na África e Austrália). Elas são formas de vida primitivas e muito simples capazes de se replicar rapidamente – algumas espécies duplicam sua população em apenas 20 minutos – e apresentam um tipo de organização muito bem sucedido. Uma grande realização! Poderíamos considerar, talvez, que a vida não teria que ultrapassar o nível procariócito para ocupar, completamente, os variados ecossistemas da biosfera. A vida, entretanto, foi forçada a diferenciar-se de maneiras muito mais complexas.
Isso explica a criação de eucariócitos, sua associação para construir o corpo macro de plantas e animais multicelulares cuja última etapa foi o surpreendente desenvolvimento de nosso único neo-córtex, que diferenciou o Homo sapiens do resto. Os modelos biológicos de estruturas mais simples, porém altamente bem sucedidas, mantém-se como tal até hoje. Hemoglobina é um bom exemplo. É uma molécula orgânica complexa que transporta oxigênio para os diferentes tecidos e foi inventada há muito tempo na escala dos vertebrados. Na medida em que a vida atinge o modelo correto ela mantém esse modelo, acrescentando outras estruturas para conquistar novos nichos para exploração, experimentação e produção de vida.
Regina: Como a vida consegue garantir um design estável para o corpo de cada espécie?
Rogerio: Para poder transmitir as características hereditárias de cada espécie, a vida criou o elegante modelo químico de apenas quatro bases nitrogenadas que constitui o RNA e o DNA. Essas quatro bases são as letras do imenso alfabeto genômico, com bilhões de componentes – o código hereditário para todos os seres vivos. Esse dispositivo biológico está presente nas bactérias primitivas e manteve-se até a forma mais complexa de vida, o Homo sapiens. É o mesmo modelo fundamental que a vida inventou e continua a repetir até a atualidade.
Esse modelo formativo, entretanto, não é suficiente para preencher as exigências concretas para a elaboração das estruturas dos organismos. A contribuição do impulso genético inicial na formação dos corpos é limitada. Dezenas de milhares de genes são insuficientes para induzir a formação completa das estruturas anatômicas que compõem um corpo adulto. No caso do Homo sapiens, por exemplo, sabemos, a partir do ano 2.000, que apenas cerca de 30.000 genes são os indutores básicos do desenvolvimento dessas estruturas. Essa contribuição fundamental é claramente insuficiente para que a formatividade dos corpos se complete.
Um processo adicional é responsável pela continuação do impulso formativo inicial dos organismos vivos induzido pelos genes. É o chamado impulso epigenético (etimologicamente, além da genética) em que comunidades de células competem entre si nos diferentes locais em que novas estruturas corporais são criadas. Nessa competição – que obedece as regras da seleção natural de Darwin – os grupos celulares mais aptos predominam no estabelecimento das novas estruturas anatômicas. Esse processo implica em divisão, diferenciação e movimento de células desses agrupamentos, além da morte das células com menos fitness para determinada situação formativa. Na formação do sistema nervoso, por exemplo, o processo epigenético atua potentemente descartando até 70% das células envolvidas na laboriosa atividade de esculpir suas estruturas. O termo Topobiologia foi criado por Gerald Edelman para descrever essas atuação local dos grupos de células, indispensável na formatividade dos corpos dos seres multicelulares
Na embriogênese, os agrupamentos celulares com mais aptidão tem influência , por sua vez, sobre os genes que deram o impulso inicial para a formação das estruturas. Dessa maneira, as estruturas em formação nos diferentes locais do organismo modificam os impulsos iniciais dos próprios genes. Esse processo de estimulação de ida e volta explica, basicamente, a formação das diferentes estruturas envolvidas na constituição do corpo.
Regina: Um ponto importante para nós é esse paralelismo seletivo, em nível genético e local, que a Topobiologia considera. Isso significa que existe um programa genético inato mas que as demandas do vivido, esse ir e voltar entre genes e grupos celulares, determinam modificações nas estruturas que estão em formação. Mesmo programas neurais inatos, por exemplo, são selecionados segundo o uso de si mesmo por si mesmo (self use).
Rogerio: É o mesmo processo de ida e volta, reciprocamente influenciando o desenvolvimento da ação e da formação estrutural. É semelhante à imagem de Escher da mão que desenha a si própria e, ao mesmo tempo, é desenhada pelo próprio desenho.
Regina: Neste ponto, há uma questão crucial no processo formativo: o vivo solidifica a si mesmo e, ao mesmo tempo, a solidificação do vivo molda as condições do devir do próprio processo.
Rogerio: A formação do corpo dos seres multicelulares tem certa analogia com a passagem de seres unicelulares, como bactérias e protozoários, na constituição de colônias, comunidades de corpos unicelulares.
Regina: É importante dar ênfase à idéia de pool, ambiente e cooperação. Acho que o processo evolutivo, do nível unicelular à organização multicelular, estabelece desde o momento inicial um princípio de cooperação, ambientalização e divisão de trabalho.
Rogerio: Sim, podemos ver esses princípios controlando a atividade celular na formação dos diferentes tecidos, agrupamentos de células que, compõem os diversos órgãos que formam as estruturas do corpo macro. A formação dos tecidos ocorre durante o período de embriogênese em que, a partir de uma única célula mãe, a célula-ovo, duzentas variedades diferentes de células competem no estabelecimento quase definitivo dos tecidos que compõem o corpo humano.
O corpo do embrião de duas semanas de vida é constituído por apenas duas camadas de tecidos primitivos: o ectoderma, que origina o envoltório externo do corpo e o endoderma que vai formar a camada que forra o interior de órgãos internas. Ambos são tecidos primitivos de natureza epitelial, lâminas de células idênticas fortemente ligadas entre si. Em termos evolutivos, são os tecidos embrionários que apareceram mais cedo. As esponjas marinhas, por exemplo, o grupo animal mais antigo na escala filogenética, são formadas apenas por essas duas camadas e seus derivados.
O ectoderma dá origem à epiderme, a camada mais superficial da pele, camada de proteção e contato e ao tecido nervoso, agrupamento dos bilhões de células nervosas (neurônios) que formam a estrutura essencial de todo o sistema nervoso. O endoderma, por sua vez, origina o epitélio especializado em absorção – encarregado da captação de nutrientes – que forra o interior de grande parte do longo tubo digestivo. Outro derivado do endoderma é o endotélio, camada mais interna de artérias, veias e linfáticos.Os brônquios também são forrados por um epitélio derivado do endoderma (grande parte do aparelho respiratório, especializado na captação do oxigênio, que oxida os nutrientes na produção de energia para as células do organismo, origina-se do aparelho digestivo). Durante a embriogênese, células aderem entre si cooperando para formar lâminas de epitélio (epiderme), lâminas se enrolam para formar tubos (tubo digestivo, tubo neural, que dá origem à medula espinhal, brônquios, ureteres) e tubos se dilatam para formar bolsas (estômago, bexiga urinária) como descreve Keleman num olhar inédito e magistral. Ao colocar o pulso – ondas de excitação – dentro desse extenso continente epitelial, o autor de Anatomia Emocional nos proporciona uma maravilhosa visão sistêmica. Dessa maneira, na trajetória dinâmica das células para o corpo macro, Keleman, além da nova abordagem, nos liberta da prisão da anatomia descritiva estática e do corpo patologizado da medicina.
A terceira camada embrionária primitiva – o mesoderma – desenvolve-se entre o ectoderma e o endoderma. Dessa camada originam-se os diferentes tecidos (tecidos cartilaginoso, ósseo, muscular) encarregados de sustentar a forma do corpo, a postura, ações e locomoção. Outro derivado do mesoderma é o abundante tecido conjuntivo (antigamente, tecido conectivo) que faz a conexão entre todos os órgãos do corpo e por onde transitam nervos e vasos que comandam e alimentam esses órgãos. O tecido conjuntivo também tem uma participação fundamental na formatividade do corpo – é o órgão da forma, de Francisco Varela – além de atuar nos movimentos sob a especialização das fáscias e tendões.
Regina: A conquista do planeta e a criação cooperativa da biosfera implicou na aquisição de novas fontes de nutrientes e energia para os organismo crescentemente mais complexos.
Você pode nos dizer como isso aconteceu?
Rogerio: Uma célula viva é um sistema isotérmico de moléculas que se auto-agregam, se auto-ajustam e se auto-perpetuam. Esse sistema extrai energia livre e matéria prima de seu ambiente (Lehninger). A energia para os processos vitais da maioria das células da biosfera é captada da radiação solar, através do processo da fotossíntese efetuado pelos vegetais verdes. Nesse processo, elétrons de origem solar são utilizados na elaboração de pequenas moléculas com alto conteúdo de energia química –especialmente o ATP – as fontes básicas de energia utilizadas pelos seres vivos. Os vegetais encarregam-se, também, da produção dos nutrientes básicos – como a glicose, formada a partir apenas de água e gás carbônico, e compostos que contém nitrogênio extraído do ar, os aminoácidos, constituintes essenciais das proteínas. Dessa maneira, as humildes plantas encarregam-se totalmente da etapa inicial, obrigatória, do extenso processo de fornecimento de matéria prima do ambiente para os seres vivos. Os nutrientes oferecidos pelas plantas são oxidados no interior das células de animais e dos próprios vegetais para a produção da energia química essencial para os processos vitais. Outros nutrientes são re-elaborados quimicamente pelas células para a produção de substâncias diversas, como hormônios e anticorpos, além da síntese das importantes proteínas filamentares utilizadas na construção das estruturas celulares e, em última instância, no estabelecimento da forma macro dos corpos multicelulares.
Regina: Essa idéia formativa, seletiva e cooperativa tem uma importância capital não apenas numa existência mas como algo que permeia tudo que existe desde o Big Bang e que, etapa por etapa, avança para diante em camadas de organização. É uma reunião de pulsos organizados dentro de uma dada arquitetura. É evidente como, a partir da célula até a formação de tecidos e camadas, os mesmos princípios atuam.É uma organização que, tanto no micro quanto no macro, é auto-pulsante, auto-formativa, tem uma membrana, um interior e um exterior, cresce e desenvolve camadas ao longo do tempo, tornando-se mais complexa.
A continuidade é ininterrrupta. Todas essas micro-etapas, os “entre”, a formação de uma coisa a partir de outra, são selecionadas e precisas. No interior desse processo os seres vivos tentam construir diversas estratégias para prosseguir. Observando a potência do vivo, percebemos o quanto a vida luta para manter-se. A vida tem essa força porque é dotada de fantásticos sistemas de segurança, em todos os níveis, para evitar tudo aquilo que pode desagregar seus componentes. Isso pode nos transmitir uma confiança extraordinária na vida.
Rogerio: Um exemplo claro dessa afirmação é o DNA nuclear, muito bem protegido por esse cofre celular central, o núcleo. A molécula do DNA tem um sistema auto-reparador que entra em ação quando ocorre uma fragmentação em uma de suas extremidades. O DNA se auto-repara continuamente para preservar o código hereditário e a síntese de proteínas pela célula, para dar suporte à potência formativa, para ser capaz de resistir e prosseguir, mesmo em condições adversas.
Regina: Quando você diz que o DNA se auto-repara continuamente para manter-se idêntico a si mesmo, isso é o que fazemos, como corpos humanos, para prosseguir apesar dos fatores que agridem nossa integridade. O mecanismo do reflexo do susto atua nesse dispositivo de proteção. A capacidade de desorganizar esse reflexo que o córtex motor e os músculos estriados em conjunto proporcionam é uma continuidade desse sistema primário de auto-reparação.
Rogerio: Quando falamos de estrutura funcionante podemos considerar o micro e compreender algo a respeito do sistema neuro-motor. No sistema muscular, os componentes essenciais são moléculas de proteína – actina e miosina – que se encadeiam para formar longos filamentos, verdadeiros polímeros biológicos. A contração muscular, em última instância, em nível molecular, depende do deslocamento de finos filamentos de actina sobre um filamento grosso de miosina, promovido pela alteração da geometria espacial dessas moléculas.
Regina: Em meados dos anos 90, Stanley me introduziu aos livros de Gerald Edelman em neurociência. A visão de Edelman pertence à mesma família de idéias darwinianas que as concepções formativas de Keleman. Na realidade, os conceitos de Edelman ressoam com a concepção de “a mente do corpo e o corpo da mente” de Stanley, elaborada já em meados dos anos 70. Foi uma sorte incrível, Rogerio, contar com você na ocasião para decifrar o texto de Edelman. Atualmente, essas idéias estão totalmente incluídas em nossas aulas e discussões nos seminários de Anatomia Emocional. Passemos a demonstrar, então, como seleção e conectividade estão presentes, também, no Darwinismo Neural de Edelman.
Rogerio: Nos dias atuais, em neurociência, a conceituação mais ampla, unitária e bem aceita em relação ao sistema nervoso é a Teoria da Seleção de Grupos Neuronais (TNGS) proposta por Edelman em l979. Nessa teoria, ele tenta explicar toda a estruturação e funcionamento do sistema nervoso humano através de apenas três postulados básicos. Sua teoria chega a tentar um delineamento anatômico e funcional para explicar a consciência. Como Keleman, Edelman também,trabalha com uma visão unitária corpo-mente.
Em síntese, os três postulados da TGNS consideram: l) o estabelecimento da neuro-anatomia do cérebro durante a embriogênse; 2) as modificações funcionais dessa rede neural promovidas pela experiência durante uma história de vida; 3) o conceito de reentrância – um processo de sinalização recíproca entre neurônios de diferentes grupos (mapas neurais) – o mais importante dos tres postulados, para nós, na leitura de Keleman.
O primeiro postulado considera o estabelecimento das características neuroanatômicas de uma dada espécie. Leva em consideração o processo seletivo na vida intra-uterina, em que grupos de neurônios competem com outros grupos (competição topobiológica) para construir as estruturas neurais. Nessa competição, 70% dos neurônios chegam a morrer em certos locais do sistema nervoso, como mencionado anteriormente. O resultado desse processo seletivo – o estabelecimento da rede neural no sistema nervoso central – é denominado repertório primário.
Regina: Eu gostaria de enfatizar essa conceituação do ponto de vista evolutivo. Você está considerando algo que, em nossa compreensão, está presente no pensamento de Keleman, todo o tempo. Acontece esse primeiro momento, embriogênese, em que o sistema nervoso da espécie é esculpido com o melhor material disponível. Essa é nossa herança anatômica, a rede neural básica do corpo dado da espécie. Em relação com o que você está dizendo – esta espécie de esculpimento em que 70% dos neurônios laboriosamente produzidos são descartados – eu percebo a visão de Keleman sobre inibição. Isso significa que ocorre uma inibição de tudo aquilo que efetivamente não tem utilidade para emergir, daquilo que é menos funcional para a situação, que tem menos potência. Neste caso, tudo o que não tem potência no contínuo devir de um corpo é inibido.
Rogerio: Em termos neurais, ocorre sempre uma inter-relação entre inibição, bloqueio e a força que você e o Keleman costumam lembrar, a excitação. Todo o funcionamento do sistema nervoso, do primeiro neurônio mais simples até a estrutura mais complexa, como o neo-córtex, implica inibição e excitação. Essa dualidade funcional é básica para a compreensão de como funciona o sistema nervoso é também um conceito de importância capital na visão kelemaniana.
Regina: Podemos ver, facilmente, como o pensamento e a prática desenvolvidos por Keleman são totalmente coerentes com o pensamento evolutivo: todo o funcionamento do sistema nervoso é seletivo. O comportamento, o traço, a ação emergem se é silenciado o que não é mais funcional. Ou, ainda, que seja inibido o que não se adapta a um propósito específico. A visão de Keleman da produção de corpo é relacionada de perto a essa inter-relação inibição-excitação. Para mim, Keleman tem coerência em toda sua visão, onde a prática tem uma relação direta com o que ele pensa desde o nível genético, passando pela embriogênese, pelo nível experiencial do corpo topobiológico ao longo de uma vida em particular desde o nível de mapas neurais até interações sociais.
Rogerio: O segundo postulado da TNGS afirma que – depois que a rede neuroanatômica, o repertório primário foi estabelecido – irá ocorrer uma seleção funcional nessa rede, como resultado das experiências pessoais de uma história de vida. Sobre a rede neural estabelecida no corpo inato da espécie incidirá uma ação seletiva de tudo o que é mais usado, mais estimulado, que terá como resposta do sistema nervoso uma intensificação da força sináptica (sinapses, espaços na conexão de neurônios, que o impulso nervoso atravessa com maior ou menor potência). O reforço na transmissão do impulso através das sinapses, pelo uso repetido dessa via, facilita a passagem dos impulsos nervosos subseqüentes. É algo comparável ao uso preferencial de uma trilha, entre outras, no interior de um campo. A trilha mais utilizada mantém-se em melhores condições do que as demais, facilitando a ulterior passagem de caminhantes. A rede neural inata, característica de cada espécie, sofrerá, dessa maneira, o reforço de diferentes grupos sinápticos, diferentes vias neurais, tornando-se específica para cada indivíduo, conforme as experiências de vida que acumulou. Essa modificação da rede neural original, o repertório primário, foi denominada repertório secundário. É este repertório que proporciona as características únicas de cada um de nós.
Regina: De acordo com esse segundo postulado da TGNS, têm importância as sinapses que foram selecionadas e não mais a rede primária de neurônios. Ou seja, contam mais as conexões inter-neuronais que melhor facilitam a experiência de vida do organismo em desenvolvimento, num ambiente particular. Estamos considerando aqui o material, em nível celular, que constitui o cérebro, o que conecta melhor com o que para a construção de vias de excitação e, dessa maneira, suporta melhor a vida num organismo específico na biosfera. Existe sempre um número variável de vias potenciais e possibilidades. Algumas são mais utilizadas do que outras.
Rogerio: O terceiro postulado da TNGS, certamente o mais importante, relaciona-se com a conexão de mapas neurais – agrupamentos de neurônios, em distintas áreas cerebrais, inter-conectados e atuando na mesma função neural. Um mapa neural é relacionado com a visão, por exemplo, outro com o tato. Uma única função neural pode exigir a conexão de vários mapas. É o caso do sistema visual de macacos que, segundo Edelman, dispõe de mais de 30 diferentes mapas neurais, cada um deles com certo grau de segregação funcional – para forma, contorno, cor, movimento, entre outros.
O terceiro postulado considera a interconexão entre mapas neurais de diversas funções neurais, por meio de conexões numerosas, paralelas e recíprocas. Esse tipo de interação é chamado reentrância,sinalizações reentrantes ocorrendo ao longo dessas conexões. Isso significa, segundo Edelman, que, na medida em que grupos de neurônios são selecionados em um mapa, outros grupos reentrantemente conectados à diferentes mapas, podem ser selecionados na mesma ocasião. Correlação e coordenação desses eventos seletivos são conseguidos por sinalização reentrante, pelo fortalecimento de interconexões entre os mapas dentro de um segmento de tempo. Mapas neurais, portanto, são estruturas dinâmicas, não estáticas e definitivamente estabelecidas, que variam com o tempo. Uma premissa fundamental da TGNS é que a coordenação seletiva de padrões complexos de interconexão entre grupos neuronais pela reentrada é cartográfica.
Regina: Através da aprendizagem, quer dizer, través das experiências devidamente assimiladas, há uma cooperação entre redesque começam a interagir paraproduzir outro design, outra cartografia. A novidade dessa visão reside na seleção e cooperação de mapas neurais porque na vida adulta não ocorre mais a produção de tecido neural, apenas a intensificação de sinapses e novas interconexões de mapas. O foco de Keleman, em seus últimos papers, localiza-se totalmente na potência sinaptogênica (reentrância) de sua prática formativa, o método dos cinco passos.
Rogerio: Depois do nascimento, não ocorre a criação de novos neurônios, apenas a perda contínua dessas células (com a possível criação de neurônios na vida adulta, a partir de células-tronco). A cada dia milhões de neurônios são destruídos.
Regina: Isso é a otimização do patrimônio neural – a reentrância de mapas que esculpem novas possibilidades através de novas combinações sinápticas.
Rogerio: A visão clássica de que existe uma hierarquia no sistema nervoso em que estruturas neurais recentes, do ponto de vista evolutivo, como o neo-córtex, por exemplo, controlariam todo o sistema nervoso perderam o sentido com o conceito de mapas reentrantes. Nessa nova visão, em última instância, o que denominamos “eu” é determinado por mapas reentrantes globais que funcionam com uma fantástica dinâmica, sujeita à mudanças no tempo e através do aprendizado.
Regina: O “eu” é uma construção de mapas reentrantes em ação, temporariamente estabilizados, produzindo vida de uma certa maneira, em determinado ambiente. Na realidade, existem múltiplos selves, como diz Keleman e outros autores contemporâneos – para eles não faz sentido a idéia de um self monolítico. É na reentrância que acontece o que ainda não existe.Quantos mapas reentrantes são necessários para produzir uma modificação ou um novo comportamento?Apertar as mãos, por exemplo. Implica na conexão de duas áreas que tem sensibilidade, uma organização motora, um pulso, uma excitação – então um comportamento é estabelecido. Como é um aperto de mãos firme? Como é apertar mãos com sedução? Como é apertar as mãos com autoridade ou restrição? Cada um desses comportamentos se afirma quando você o repete. É o comportamento resultante da combinação de mapas motores com mapas tácteis, com mapas de temperatura e assim por diante. Trata-se de uma moldagem excitatória que organizamos em nós com uma série de variações, ou seja, muitas reentrâncias.
Rogerio: É o que ocorre quando se modifica a propriocepção, sensibilidade articular e muscular profunda, por exemplo, em que usamos terminais de sensibilidade diferentes.
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Regina : Como também ao regular o tônus muscular e distinguir diferentes qualidades da ação. Podemos compreender, então, que o comportamento é constituído de itinerários, possibilitando-nos uma narrativa. A recombinação que acontece na forma nos força a organizar reentrâncias para poder assimilar novas intensidades e tornar-nos capazes de interagir com esses novos fluxos. Essa operação produz camadas únicas e reentrâncias novas.
Rogerio: Acho fantástica essa passagem que você acabou de fazer e que o Keleman fez, com brilho, em seu trabalho. A biologia molecular e a neurociência, com todo seu poder interpretativo, não conseguem ultrapassar seus limites para falar do corpo em sua configuração pessoal.Keleman, com sua teoria e prática, em sua visão ampla, conseguiu fazer essa passagem. Isto é Anatomia Emocional.
Regina: Quando ele aplica diretamente essa biologia molecular e neurociência darwiniana ao processo vivido por pessoas, podemos perceber claramente do que a vida é feita. Compreendemos, também, como complexidade e biodiversidade subjetivas podem ser estimuladas e cuidadosamente moldadas. Tudo isso está em direta relação com a continuidade da produção de corpos. Quanto mais diversidade e organizações neurais motoras tivermos, mais eficientes como um soma subjetivo seremos. Esse é o dom evolutivo para cada um de nós para ser usado ao longo uma vida.