Venha Estudar com a Regina 2024
1. Por que estudar com a Regina?
Prepare-se para ler um longo convite. Não basta eu lhe dizer que vamos pensar, experimentar e praticar o que é ser um corpo. Sim, essa afirmação já é muito: ser um corpo e não ter um corpo. Isso já nos coloca em um lugar muito diferente. Mas as consequências do desdobramento dessa realidade viva em camadas num processo de produção contínua do que é um corpo são muitas. Portanto, respire, encontre seu foco e leia com atenção esta proposta.
Sou Regina Favre, formada em Filosofia pela PUC- SP, terapeuta, educadora e pesquisadora independente. Descobri o caminho do corpo com José Ângelo Gaiarsa. Integro a primeira geração da terapia política do corpo identificada com a contracultura e o alternativo, desde os anos 1970. Naquele tempo, ser político significava desidentificar-se radicalmente dos valores burgueses que hegemonicamente modelavam os corpos e os estilos de vida. Tive minha iniciação como terapeuta no Quaesitor Growth Center, em Londres,1973/74 onde a Psicologia Humanística originária do Instituto Esalen, na Califórnia, trazia o corpo e a verdade somática para o campo do desenvolvimento pessoal (personal growth).
De volta ao Brasil, fui pioneira e participante ativa na mutação da subjetividade social ocorrida dos anos 70. Semeei o campo do corpo subjetivo no Curso Reichiano do Instituto Sedes Sapientiae, com Anna Veronica Mautner ainda na década de1970, e no Ágora Centro de Estudos Neorreichianos durante os anos 1980/90, com Liane Zink. No início dos anos 1980, nos encontros com Felix Guattari em suas vindas para o Brasil, descobri a filosofia da diferença, a produção social da subjetividade, as micropolíticas das vidas e seus devires já no novo contexto do capitalismo mundial integrado (CMI) que se espalhava pelo mundo. Passei então a buscar um conceito de corpo-processo que coubesse nessa visão ampliada dos ambientes onde vidas se formam, os primeiros passos da elaboração de uma filosofia corporificada associada a um dispositivo clínico que foi se tornando a verdadeira identidade do meu trabalho.
Ao encontrar Stanley Keleman, em 1990, absorvi o conceito de corpo como um contínuo processo de produção de si no mundo. Passei a ter contato pessoal e profissional constante até 2005. Nesse tempo cultivei o Centro de Educação Somática-Existencial e comecei a elaborar essa interface entre a psicologia formativa de Stanley Keleman e a ecosofia de Felix Guattari, numa articulação que ajudasse a compreender os corpos subjetivos e, ao mesmo tempo, seus ambientes formativos no Brasil. Como formamos nossas vidas, nós, classe média, que nos preocupamos com essas questões? Desde lá me acompanhava uma sensibilidade para a história social e para os jogos do poder colonial, uma preocupação com o abismo no Brasil entre pobres e ricos, com nosso racismo, com a devastação ambiental e uma clareza de que os corpos se fazem sempre em modos de relação com as condições e as forças coletivas contemporâneas à sua continuidade.
Em 2002 criei o Laboratório do Processo Formativo onde segui cultivando, bem mais focada, juntamente com grupos e diferentes colaboradores, dispositivos de clínica, ensino, pesquisa audiovisual e publicação digital sobre esse corpo dotado do impulso biológico de formar a si, amadurecer para a realidade de ser parte de processos coletivos e cultivar a potência de gerar a diferença. Desenvolvi a Instalação Didática como estratégia de um ensino conceitual corporificado e produção simultânea de material audiovisual para estudo e publicação (leia mais aqui: https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2016/07/na-instalacao-didatica/)
Os Grupos de Exercício, praticados desde os anos 1970, nunca deixaram de existir para mim, inicialmente como espaço de experiência viva com carga e descarga, com a potência expressiva da energia e das emoções. Mais adiante, a partir da influência de Keleman, para mim, passa a ser um exercício formativo com função de preparar os corpos para o reconhecimento e o manejo do processo de fazer e refazer corpo em seu impulso de prosseguir, sempre se conectando com outros corpos e canalizando a vida em nosso planeta.
Cuidei da tradução e apresentação de todos os livros de Stanley Keleman para a Summus Editorial, entre os quais Anatomia Emocional, que segue funcionando como interlocutor do meu pensamento clínico e filosófico e fio condutor de meu ensino. Publiquei vídeos e textos no site do Laboratório do Processo Formativo e em diferentes revistas especializadas tais como Cadernos da Subjetividade (Núcleo de Pesquisas da Subjetividade da PUCSP), revista IDE (Sociedade Brasileira de Psicanálise), Cadernos Reichianos (Instituto Sedes Sapientiæ), revista Interfaces (UNESP); roteirizei e dirigi o longa-metragem Memória do Ácido (2017). Escrevi “Do Corpo ao Livro” (Summus Editorial, 202) e vários ensaios em livros coletivos juntamente com docentes das UNIFESP, UNESP e UFES.
2. Venha viver com a Regina o desafio do co-corpar virtual
Com a eclosão da pandemia e a migração do trabalho de clínica, exercício e ensino formativo para a vida virtual, apoiada na experiência presencial anterior, de gravação simultânea ao acontecimento, na Instalação Didática, ampliei fortemente a pesquisa sobre corpo e imagem, comportamento e linguagem, excitação e contato e sobretudo aprofundei a evidência da produção e do manejo relacional e formativo dos corpos no novo ambiente, a infosfera.
Esse novo campo de interação, nesse novo tempo, requeria novas formas de conexão para acolher essa mutação e esse novo processo adaptativo. A simultaneidade de aparição, ação e linguagem que eu já vinha cultivando nos processos de gravação, exibição, corporificação, teorização e conversa vincular nos tempos presenciais da Instalação Didática, facilitou enormemente a adaptação às novas plataformas do tipo zoom. As linhas narrativas e performáticas do acontecimento-encontro online puderam aparecer com toda clareza graças a compreensão desenvolvida por Keleman de forma e função, de linguagem e descrição, de presença e ação, de reconhecimento e não mais da interpretação do vivido pelos corpos.
No pós-pandêmico que se seguiu, decidi manter online todos os grupos de ensino e de exercício formativo. Essa intervenção do virtual sobre a experiência corporificada de si, na interação entre os corpos presentes na tela, na evidência do processo formativo, no feedback da imagem sobre o corpo e vice-versa, na possibilidade de repassar os encontros nas gravações e reestudá-los, me produziu a constatação preciosa da nossa condição em rede, evolutiva e planetária.
Os meios ainda continuam sendo a mensagem, como afirmava Marshall MacLuhan já nos anos 1960 (Media is the message). Sem o virtual jamais teríamos nos percebido como inseparáveis dessa realidade totalmente interligada e precária onde formamos nossos corpos e destinos. Confirmava-se que cada ecologia requer diferentes comportamentos, diferentes formas dos corpos e diferentes modos adaptativos.
Nessa visão formativa by Favre, a questão da conectividade dos corpos com outros corpos, forças e mundos torna-se fundamental, indo muito além das conexões familiares. Não fosse a conectividade inerente do vivo desde o molecular, a Vida e a Evolução não teriam vingado e não estaríamos aqui. A vida preserva, portanto, o que funciona. O vínculo, então, continua sendo fundamental, mais fundamental do que nunca, para que a vida siga se canalizando neste nosso planeta ameaçado de inviabilização. Mas para que possamos sentir, pensar e nos comportar como parte do processo planetário é importante amadurecer e promover amadurecimento vincular. Da dependência à autonomia, da exploração à participação. Só assim poderemos agir e nos sentir como parte de processos maiores, para além do individualismo. Vinculação é comportamento e organização corporal. É também reconhecimento e diferenciação.
3. O que você vai estudar com a Regina?
Vamos compor, de fevereiro a novembro de 2024, um corpo de conhecimento corporificado do Formativo by Favre, através de um combinado indissociável de dois tipos de encontros: Exercício Formativo e Seminário Formativo.
Exercício Formativo: encontros online, regidos por mim, onde, diante da tela do computador ou do celular, conversamos sobre o processo formativo em andamento e praticamos ações formativas durante 1hora cada um em seu quadradinho. Micromovimentos sobre si e linguagem. O que importa nesses encontros é aprender como um corpo dá forma a seus comportamentos para estar presente, como dá forma a seu processo adaptativo (conectivo) aos ambientes, e no caso, ao próprio encontro presente dos corpos no virtual. Problematizamos a experiência de si e do acontecimento-mundo na língua formativa da Anatomia Emocional de Keleman by Favre. Evocamos em nossa organização somática, à medida que se aprofunda a experiência, camadas da Evolução e camadas do nosso desenvolvimento em particular, filogênese e ontogênese. E aprendemos COMO produzir variedades de comportamento, estabilizar formas que funcionam no presente e desorganizar as que não mais funcionam.
Seminário Formativo: estudo online do Processo Formativo sempre a partir do processo grupal, do estudo de si, de seus mundos, das forças coletivas presentes na produção dos corpos, da categorização e dos conceitos kelemanianos para o reconhecimento e manejo dos processos formativos em andamento. Exercitamos o cartografar, o gerar somagramas e as narrativas que permitem vivenciar, compreender e posturar as mutações nos jogos de força dos poderes que desenham vidas e formas de vida. Vamos construindo a lógica conceitual do formativo enquanto pratica-se o processo de corporificação, aprecia-se a relação corpo e linguagem, conversa-se sobre os poderes que modelam as vidas nos mundinhos e no mundão, sobre os modos de subjetivação, sobre comportamentos, sobre história social brasileira, raça, classe, gênero, sobre os ambientes onde nossas vidas se desenrolam. Praticamos a captação do presente se produzindo como tecido em nossos corpos, a circulação da excitação e das formas comportamentais, entre os participantes nas telinhas. Visitamos autores e influências que nos auxiliam a compreender e a honrar nossa parte no processo conporificante de GAIA.
4. Para você organizar seu tempo e sua participação
Seminário Formativo: sempre último sábado do mês, de fevereiro a novembro, das 14h às 18h (online).
Exercício Formativo: todas as terças-feiras de manhã, das 9h às 10h (online)
Exercício e Seminário compõem uma unidade indissociável no estudo formativo.
Valor: 10 mensalidades de 500 reais de fevereiro a novembro
Inscrições: +5511994881700 (WhatsApp Regina).
Vagas: 30
1. Antes da inscrição é necessário marcar uma conversa online com Regina.
2. Para reservar sua vaga é necessário adiantar metade da primeira mensalidade (250 reais)
5. Regina e a universidade pública: a utilidade do Formativo by Favre
De Flavia Liberman, Terapeuta Ocupacional, docente, pós-doutora, UNIFESP:
Regina vem oferecendo linguagem, conceitos e práticas de um pensamento formativo kelemaniano by Favre para docentes e alunos da Terapia Ocupacional, na USP, na UFRJ e outras universidades públicas. Também é colaboradora em Disciplinas de Pós- Graduação para diferentes alunos do campo da Saúde e Interdisciplinar na UNIFESP- Baixada Santista, através de uma prática formativa semanal que chama de Corpo, Adaptação, Desejo de Seguir, o que tem sido extremamente útil para todes. O Formativo by Favre tem sido objeto de pesquisa de mestrados, doutorados e pós-doutorados, na academia.
De Renata Caruso Mecca, Terapeuta Ocupacional, docente, pós-doutoranda, UFRJ:
“O desejo de organizar grupos de aprendizagem do processo formativo nas universidades públicas decorreu do trabalho que Regina já vinha realizando em formato virtual desde o início da pandemia, em pequenos grupos, de uma maneira simples, barata e eficaz pelas tecnologias de informação e comunicação. A relação virtual intensificou seu interesse por explorar as possibilidades biológicas, neuromotoras e excitatórias dos corpos de se automanejarem vincularmente nos grupos de exercício em condições específicas dadas por essas tecnologias e modelar presença e conexão. Além de expandir o acesso a esse corpo de conhecimento formativo kelemaniano by Favre e sua experiência em grupo, constitui-se também numa estratégia de cuidado para a comunidade acadêmica.”
Marque sua entrevista neste whatsapp
11 994881700
E venha estudar com a Regina!
Praticando o somagrama
O somagrama é uma representação gráfica de um dos mil modos de funcionamento de um corpo para ser quem é e estar no mundo. As formas de ser estão todas configuradas pela nossa anatomia herdada da espécie e pelos modos de subjetivação presentes no contemporâneo de um corpo. Isso é o que Keleman chama de pré-pessoal e pós-pessoal. Entretanto, o pessoal vai se estruturando anatomicamente através dos diferentes comportamentos de conexão de um corpo a seus ambientes ao longo de seu crescimento. É importante aprender a descrever esses ambientes, cartografar esses mundos.
O somagrama é descritivo e experiencial. Sua chave é o COMO, como você faz o que faz.
Há um interjogo entre o cartografar, corpar e o desenhar somagramas.
O Jardim visto pelo ângulo da porta

Os jardins seguem aparecendo pelo ângulo das portas
Em janeiro de 1972, durante um retiro zen-budista em Campos do Jordão, escrevi um poema com esse mesmo título.
Às onze horas, as onze horas amarelas
riem às gargalhadas para o sol,
com todas as suas pétalas.
A água entra na caixa,
as panelas batem na cozinha.
Atrás, na mata imóvel,
araucárias carregam o céu nos braços.
O sol se envolve em nuvens
e as onze horas se agitam nos caules,
em enérgico protesto.
A água entra na caixa,
as panelas batem na cozinha.
Volta o sol,
as onze horas sorriem agradecidas.
A vassoura canta
no chão de cimento
O Mestre Tokuda nasceu em Hokkaido, norte do Japão, em 1938. Diplomou-se em filosofia Budista pela Universidade de Komazawa, em Tóquio, em 1963. Em 1967 torna-se Monge Budista, ordenado na Escola Soto Zen pelo Mestre Ryohan Shingu. Seu nome de ordenação é Ekyu Ryotan. E de Ekyu vem de Eisai, mestre Rinzai que transmitiu sua linhagem no Japão na época de Mestre Dogen; Kyu era o nome de leigo. Na composição de Ryotan, Ryo quer dizer “bom”, e tan significa “processo profundo”. Recebe então a permissão do Superior da Escola Soto Zen, Taiun Sato Roshi, para ensinar e ordenar monges zen. No processo de formação, pratica também com outros mestres do Zen Budismo como Nakagawa Soen Roshi, Sogen Asahina Roshi e Kodo Sawaki Roshi. Em 1968 vem para o Brasil como monge missionário, para trabalhar com o Mestre Shingu Roshi, que na época era o Primeiro Superior para a América Latina da Soto-Shu. O jovem Monge Tokuda passa a residir no templo Busshin-ji, em São Paulo. Trabalha como professor de língua japonesa e esportes para crianças e inicia um grupo de zazen no templo Busshin-ji. Entra em contato com brasileiros que expressavam forte interesse pelo zazen; aceita então convite de Simone de Zeunig e deixa a cidade de São Paulo, para residir em Campos do Jordão, SP, onde estabelece um grupo de prática. Para sobreviver, inicia trabalho com shiatsu, acupuntura e ervas medicinais seguindo a Medicina Tradicional Chinesa (Kampoh). Wiktor, meu companheiro, e eu participamos desse grupo desde seu início. Em 1974 aceita o convite da Sociedade Budista do Brasil, e assume o templo Theravada no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, funda uma sala de meditação em Copacabana. Mas nesse momento, Wiktor e eu, já estávamos bem longe, em Londres, seguindo a trilha de Caetano e Gil.
Sempre achei que o zen havia sido o portão para a cultura do corpo cuja existência eu já havia intuído embora não tivesse permanecido mais do que dois anos em contato com Tokuda. Os detalhes dessa genealogia onde minusculamente apareço, retirei do site da falecida cineasta zenbudista Tania Quaresma. É uma origem que me honra e que me explica.
A força do budismo zen se faz notar nas tramas dessa cultura norte americana do “body-mind” ou mais precisamente do “embodiment”, tendo me permitido absorvê-la sem maiores estranhamentos para dentro da construção de uma vida e de um trabalho desde os primeiros momentos dessa mutação pela qual passei precisamente aos 30 anos. No início dos anos 1970, meu primeiro casamento quebrara à sombra da quebra do casamento de meus pais, na verdade, uma quebra de valores acontecida no terremoto da história nesse início de década. Nesse exato momento passei a viver com Wiktor, judeu, criança sobrevivente do holocausto como outros judeus de quem me tornei amiga nesse preciso momento. Pensava, ouvindo as histórias do gueto de Varsóvia, como meus pais podiam fazer um drama tão grande diante de uma história de infidelidade conjugal? Por que tanta culpa e vitimização? A dependência e a fragilidade brasileira de classe média diante do sofrimento perderam precisamente ali sua legitimidade para mim.
E naquele momento, no corpo que se havia feito poroso com o desmanche de um modo-classe-média-brasileira-de-ser absorvi a força de sobrevivência de mães e pais judeus que imigraram durante e depois da Guerra para o Brasil carregando esses filhos ainda pequenos, mortalmente assustados. Esse foi o verdadeiro início de uma mutação: imigrar para outro mundo salvando a mim e as filhas de um mundo em dissolução e recomeçar a vida, o que foi realmente um salto quântico. As mutações ao longo de uma existência em particular têm essa caraterística herdada do processo evolutivo descrito por Darwin. Um corpo não encontra mais conexões com o ambiente onde a vida anteriormente se cultivava. Conexões são comportamentos, modelagens de si que se repetem e se estabilizam enquanto dura aquela forma de funcionamento que gera continuidade de um corpo e seu ambiente, daquele modo. Ao se tornarem obsoletos, seus contornos, brusca ou gradativamente, se diluem tornando os corpos, se estes não sucumbem à insustentabilidade, disponíveis para uma nova formatação adaptativa. Que sofrimentos, terrores e gozos inéditos se desprendem de um corpo tornado informe, imerso num campo desconhecido? Esses mesmos filhos, judeus de formação socialista, nessa precisa transição, com sua atitude política e suas relações de proximidade com a militância de esquerda naqueles terríveis momentos da ditadura militar, se tornam os amigos de convívio diário. Passo, então, a fazer meus primeiros esboços de um novo corpo precisamente com eles, co-corpando com eles, na expressão de Stanley Keleman, judeu também, que desempenhou papel central no roteiro da vida que construí em décadas seguintes, tal como descrevo em Do Corpo ao Livro.
Judith Lieblich Patarra, judia também, parte desse grupo, jornalista e também amiga daqueles anos, escreveu já no final dos anos 1980, a biografia de Iara Iavelberg. Com total abundância e precisão de detalhes narra a breve existência daquela diva judia da Faculdade de Filosofia da rua Maria Antônia, seu casamento de tenra juventude celebrado pela família e rompido tal como o meu em nome do desejo de viver sua transmutação no caldeirão do movimento estudantil, seu grande amor revolucionário por Carlos Lamarca, sua vida clandestina nos “aparelhos” urbanos e na luta camponesa. E, finalmente, sua morte heroica em um predinho no bairro da Pituba, cidade de Salvador, cercada pela repressão. Imagens de Iara me chegavam pelo boca-a-boca naqueles dias de ousadia, roçando aquele meu corpo já inteiramente desfeito da moça brasileira. Sentia, pulsando intensamente, o imenso mistério de alguém como eu, um quase duplo, longe, muito longe, escondida, fugindo, vivendo, morrendo, em meio à violência inimaginável. Quando Wiktor e eu, em 1971 aderimos finalmente à contracultura, ao rock, ao ácido, às motos, cruzando estradas, acampando em praias, viajando no Trem da Morte para a Bolívia, sentido a força revolucionária latino-americana, estávamos ressoando, convictos, com essas pessoas como Iara e tantos outros cujos nomes e fotos apareciam em cartazes com o sinistro cabeçalho Terroristas Procurados, que resistiam à devastação existencial em curso neste nosso país, uma devastação, como a que passamos a viver nos tempos bozo-pandêmicos.
A vida da jovem de classe média brasileira se mesclara inteiramente à vida do sobrevivente do holocausto e o simples estarmos vivos passara a ser celebrado intensamente a cada instante, até que o terror perfurasse as bordas frágeis daquele meu corpo criado na segurança perversa de um ninho brasileiro. Se, naquela virada dos anos 70, Wiktor atravessou intrepidamente essa dissolução identitária de uma vida de judeu, cientista, professor da USP, eu, Regina, não atravessei.
A moça brasileira filha de médico, formada em filosofia, publicitária, que havia se atirado subitamente junto com as filhas pequenas no prazer, na alegria na liberdade, no contato imediato com a vida, percebe que dera um salto no escuro, sem rede. A morte rondava o Brasil, o regime militar-empresarial exterminava ferozmente e eu estava longe das origens, bem mais perto desse abismo. Conheci ali os confins da desterritorialização com meus parcos recursos existenciais. Wiktor não se abate e mais uma vez enfrenta a morte com sua força de sobrevivente. Eu, subitamente esvaziada de tudo, mergulho numa bad trip sem fim. Não suportava mais nem um minuto não enxergar um futuro previsível. Mas não havia sido pouco o aprendizado lisérgico acompanhado do Livro Tibetano do Mortos, de Timothy Leary, daquilo que aprendi a chamar, bem mais tarde, com Stanley Keleman, de “ending”. Senti ali que precisava me deixar morrer. E morri.
Como fantasmas começamos aos poucos nos juntar a alguns poucos que por diferentes vias também haviam se afetado por ecos budistas que chegavam até o nosso deserto brasileiro de então. Mas esses ecos nos apontavam não para o horizonte japonês como se poderia esperar, mas para o lado oposto do Pacifico, a costa oeste americana. Anos depois me dei conta do que fizera movida por aquele impulso. Acontecia algo profundo e libertador nos Estados Unidos que havia sido tocado pelo budismo décadas antes e que só naquele momento chegava até nós.
Findo o desbunde, nos recolhemos no zen em busca da verdadeira iluminação. Como os primeiros desbundados americanos dos anos 50, esperávamos que aquilo que o LSD nos oferecia, insustentável em longo prazo, pudesse acontecer pela prática radical do corpo, imóvel e silencioso, no simplesmente sentar, guiados por um mestre, segundo um ritual de simplicidade milenar transmitido corpo a corpo, de mestre em mestre. Poetas malditos como Roberto Piva, o beatnik da São Paulo dos anos 1960, e As Portas da Percepção, de Aldous Huxley, que li aos 18 anos, ainda nos finais dos anos 1950, encontraram seu lugar com a vida contracultural que se instalou pedindo outro corpo para aquele início dos anos 1970. Aquele meu corpo libertado pelo ácido, pelo sexo, pelo contato direto com natureza, pelo rock, pelo riso, pelas aventuras com crianças e amigos, seguiu desta vez a rota de um treinamento exato, profundo, movido pela disciplina de si e não mais pelo estímulo das drogas.
Poucos anos depois, já me encontrava inteiramente desconstruída pelas práticas dessa jovem cultura americana da Psicologia Humanística na qual havia mergulhado na Londres dos early seventies. Ao visitar Stanley Keleman em Berkeley pela primeira vez em 1977, me deparei na clássica livraria alternativa Shambalah, situada na Telegraph Avenue, berço do movimento hippie ao lado do portão principal da Universidade da California, com uma completa história do budismo na América, intitulada “How the swans came to the lake – a narrative history of buddism in America”. Esse título maravilhoso que soava como um koan, desvendava para mim a marca do budismo naquela cultura que eu visitava, ali, pela primeira vez.
De fato, no inicio do século 20, contatos com acadêmicos americanos estudiosos da literatura japonesa se fizeram, propiciando que os primeiros monges vindos do Japão se dirigissem inicialmente para a Universidade de Honolulu e a seguir para cidades grandes da América, como Los Angeles, do outro lado do Pacífico. Imediatamente por acaso, narra Rick Fields, esse jornalista autor dessa fina pesquisa, esses mensageiros do dharma conhecem alguém, alugam um pequeno espaço urbano para instalar um pequeno do-jo, passam a viver na pobreza com o essencial, mantendo aquela inabalável confiança na vida e total disponibilidade para o acontecimento que só o zen transmite, e rapidamente passam a atrair pessoas tal como aconteceu com o sensei Tokuda e aquele pequeno grupo inicial que, espantosamente, em poucas décadas se multiplicou em vários mosteiros pelo Brasil. Nas cidades cultas norte-americanas em que o pragmatismo cresceu desde o século 19 como a primeira filosofia genuinamente americana, contando com a tradição religiosa pré-existente do Transcendentalismo, da contemplação da natureza e da praticidade da vida simples, o budismo encontrou condições extremamente favoráveis para contaminar esse país que se preparava para viver seu destino poético, filosófico e espiritual, não fosse sua entrada na 2a Guerra e o consequente boom econômico que se seguiu, gerando a sociedade de consumo, a american way of life, em relação à qual a “geração do corpo” se constituiu inicialmente, como uma deriva. A leitura desse livro que traz na capa fotos misturadas de monges, com gestos e sorrisos despojados de qualquer pose, esperou longo tempo na estante por sua vez, o que, na verdade, só aconteceu nos tempos de lockdown, me permitindo retrospectivamente compreender o tropismo que se instalara em mim naquele momento germinal me arrastando ao encontro dessa cultura americana do corpo cuja história é tecida com fios de muitas origens dentre as quais se destaca o fio do zen, brilhando infinitamente em sua perfeita simplicidade. Essa foi, então, uma primeira mutação. Desejo voltar mais adiante à familiaridade que senti com essa cultura, repito, do corpo, ou melhor dizendo em inglês, por falta de tradução adequada em português, do “embodiment”. Foi esse algo do zen que me permitiu farejar o caminho em direção ao pensamento formativo de Keleman.
Stanley Keleman, como o ouvi narrar muitas vezes, participou dos primórdios do caldeirão que deu origem ao que conhecemos como as psicoterapias corporais e as educações somáticas. Juntamente com ele estavam além de manipuladores de corpo, bailarinos americanos, educadores somáticos imigrados da Europa durante e no fim da 2ª guerra, mas no caso aqui que nos interessa, entre esses jovens inovadores estava Allan Watts, então presbítero anglicano nos anos 50, futuro genro do principal introdutor do zen na América, o famoso monge D.T.Suzuki, e que mais adiante, se tornou também monge e sobretudo divulgador do zen através de uma infinidade de livros e audiotapes. Keleman, por sua vez, encerrando sua experiência como group leader no Instituto Esalen, ambiente fortemente influenciado pelo budismo americano, no final dos anos 1960 dirige-se a Zurich para sua formação em psicoterapia existencial. Nesse momento, conhece o mestre zen e também psicoterapeuta existencial alemão, Karlfried von Durkheim, cuja amizade honrou pelo resto de sua vida Assim estavam constituídas, na minha percepção, as forças do campo para dentro do qual fui atraída em meu new beggining. Dentro do mencionado grupo de praticantes daquela experimentação cultural americana, transformadora, festiva e libidinal, estavam Erich Fromm, psicanalista e sociólogo, e Karen Horney, também psicanalista. Ambos, mais velhos e mais experientes, imigrados no pós-guerra, influenciados pela Escola de Frankfurt e também atraídos pelo o zen-budismo que se espalhava na América daquela década, eram nomes com os quais esbarrei já no inicio na década de 1960 em estantes de livrarias que eu frequentava no centro de São Paulo e na mesa de cabeceira de meu pai, homem moderno e ávido de mudança para seu tempo.
O zen, embora tivesse ficado quase como uma terna memória daqueles tempos iniciais de uma vida de total fragilidade, com a chegada do vírus e o isolamento que passamos a viver, emergiu como a primeira forma de vida que naturalmente se apresentou para mim: limpar a casa, lavar verduras, cozinhar, estudar, trabalhar, sentar em zazen online todas as noites com o grupo de meditadores do mosteiro Therigata a que uma das minhas filhas pertence. A querida monja Waho, que conheço desde seu tempo de menina, conduzia a prática e em seguida lia mestres do dharma para a sangha, com sua voz cristalina e firme, livro após livro. Ao final, todos desejávamos boa noite uns aos outros. Assim começou um novo processo adaptativo radical deste corpo, desta vez à vida na infosfera.