Entre o individual e o coletivo:
Talvez você possa estar sentado no metrô, viajando de uma estação a outra, lendo esta página em seu celular. Talvez. Se você levantar os olhos por um momento, verá muitos corpos viajando também, de muitos modos, juntos, sozinhos, distraídos, atentos, conversando, observando, levando suas vidas a diferentes destinos. E por um momento, no estado contemplativo a que um tempo parados nos obriga, poderá se dar conta da enorme quantidade de conexões, operacões e ações que fazem de cada corpo ali, naquele vagão, parte de um processo planetário onde corpos se produzem juntamente com os ambientes de que são parte, expressando com suas formas quem são e como lidam com suas vidas. Não é pouco para um lance de olhar. Mas está aí para quem se dispuser a ver.
Nossa cultura visual nos ensina perfeitamente sobre a realidade dos corpos, desde as vidas de elites e celebridades até as vidas em guerras, desastres, migrações, e todos nós sabemos que os corpos nos permitem ver como as vidas dependem, simultaneamente, de si e dos jogos de força que controlam os recursos do planeta.
Corpos mostram, todo o tempo, que são feitos de forças biológicas e experiências de vida estruturadas como carne. Músculos e ossos nos particularizam e nos fazem existir como um corpo sólido e reconhecível, as vísceras processam o ambiente na nossa profundidade secreta, nos propiciando condições de prosseguir. A vida nos aparece como algo muito individual quando vivemos o corpo em nível de sua estrutura visível ou de suas necessidades de sobrevivência. Mas seria assim mesmo?
Diferentemente de um passado pouco distante, passamos a viver uma conexão formando uma quase infinita rede mental que experimentamos continuamente. Com a contração do planeta produzida pela velocidade dos meios de comunicação e a acumulação dos acontecimentos que a cibercomunicação tornou ainda mais instantânea e abrangente, cada vez mais estamos imersos nesse processo que o filósofo militante italiano Franco Berardi batizou de “neuromagma”. Em tempo real, as mentes pensam sem barreiras entre elas, em ondas psíquicas que envolvem sua ação conjunta, seja através das redes sociais, da telefonia celular, da informação de todo tipo, das burocracias e tecnologias que nos controlam e regulam. Ondas de sentidos e imagens, estados de espírito, sentimentos e desejos percorrem o planeta. O que podem os corpos nessa condição tão abrangente?
Os corpos que sempre fomos:
Felizmente, podemos enxergar nos corpos sua dimensão perene e vivenciar seu sentido em nossa relação com a vida, lembrando sempre que:
- as mudanças e adaptações que os corpos fazem são moldagens de si, com aquele mesmo corpo feito dos mesmos tecidos que biologicamente se tecem, continuamente, com os elementos dos ambientes de que aquele corpo é parte;
- corpos absorvem esse mundo que está aí, formando a si mesmos em tempo real, visível e invisível, com as mesmas regras que a vida biológica necessita, e sempre necessitou, para se efetuar;
- corpos não estão dentro da biosfera, são a própria biosfera, canais da própria vida que com sua força de bilhões de anos busca se sustentar no planeta;
- cada corpo é apenas um “aqui”, um lugar dentro dos ambientes, por onde circulam os ambientes;
- os ambientes são o “acontecimento”onde estamos mergulhados, como peixes no oceano;
- o acontecimento é o “agora” e “agora” é tudo o que é simultâneo ao ato de estarmos presentes;
- aquilo que nos permite viver o “agora” é a identificação com as nossas ações porque a “presença” nada mais é do que cada ato corporal: o que você está fazendo agora? Como é a forma do que está fazendo? Segurando o celular? Imerso nele? Imóvel, imaginando? Parte de si engatilhada para levantar quando chegar sua estação? O que te espera lá? Como é a prontidão para o que imagina fazer lá? Em que mundo vai mergulhar? Que ações seus músculos planejam?
A arte, hoje, desloca nossa percepção e experiência para esse processo planetário. A ciência, também, com sua enorme divulgação pop, nos permite ler, ver, assistir e absorver essa nova realidade ecológica. Passamos a saber, na carne, que somos parte dessa comunidade biológica que coloniza este planeta. Isso nos comunica uma enorme força.
Entretanto, sabemos, também na carne, que hoje, mais do que nunca esse poder de colonização planetária que pertence à Vida está concentrado em mãos cada vez mais numericamente reduzidas. A tradição dominante do pensamento ocidental antropocêntrico, eurocêntrico, falocêntrico nos fez crer, durante séculos, que a criação inteira estava destinada ao homem europeu, branco, macho, colonizador e proprietário do planeta. Essa divisão leonina de direitos prossegue. Porém, por outro lado, as pressões que sentimos em nossas vidas por parte das políticas conservadoras e concentracionistas de poder sobre os recursos do planeta, as redes digitais, a informação generalizada, os movimentos de resistência micropolíticos, culturais e sociais nos fazem, hoje, enxergar e sentir profundamente essa realidade de que somos parte. Isso se tornou inegável.
O corpo vem lutando biologicamente, como sempre lutou, para se manter agregado dentro de ambientes, os mais adversos. Os ambientes, hoje, lembremos, são as condições físicas, mas também as afetivas, tecnológicas, econômicas, informacionais, políticas, de linguagens, valores e sentidos articuladas entre si. Quando nos vivenciamos como corpos em processo de permanente produção de si dentro de ambientes, sabendo que ainda não existe o corpo que seremos amanhã, passamos a enxergar e confiar que temos recursos na nossa herança biológica para interferir nas formas corporais que selam certos destinos aparentemente invencíveis.
A vida no mercado:
O mercado, que desde os anos 1970 se tornou mundial e integrado, é o ambiente onde, hoje, os corpos nascem, vivem e morrem. De Nova Iorque ao fundo da África, ecoa seu poder. Mas, diferentemente do poder moral das famílias e das instituições, o poder do mercado não vigia e pune como antes, mas, num contínuo jogo de forças, exerce uma captura das forças formativas nos corpos. O mercado age diretamente sobre a vida nos corpos e sobre a forma que eles tomam para fazer suas dramaturgias, ou seja, sobre as formas particulares de desejar e fazer-se corpo no mundo.
A produção constante de imagem e sentido onde estamos imersos é a própria expressão do mercado. Ele inunda continuamente nosso espaço corporal, agindo através de um duplo jogo: a ameaça de exclusão (e desconexão) das redes que formam nossa realidade e a oferta de configurações para nossa forma que constantemente se desfaz sob o efeito da velocidade e da intensidade dessas forças. Diante das ameaças de exclusão que são continuamente mostradas nas mídias (violência, miséria, desastres, destruição, desamparo, políticas sociais, etc.), os corpos reagem, como todo e qualquer animal, acionando o reflexo do susto e em seguida o reflexo da imitação. Reflexos são comportamentos pré-programados, parte do acervo de comportamentos de sobrevivência da espécie preservados pela Evolução. Inicialmente, diante do perigo de exclusão apresentado pelo mercado, os corpos se recolhem, se fecham, se desligam do ambiente e de suas redes, e, muitas vezes, se fragmentam em pânico, como o bicho diante do predador. A seguir, o reflexo da imitação se desencadeia, e imediatamente nos faz copiar o ambiente. Esse ambiente, no caso, é o próprio mercado nos oferecendo, como salvação, estilos de vida, que aparentemente funcionariam como bordas para nossa desorganização. Fundimos com o ambiente, nos homogeneizando com ele, para deixarmos de ser alvo das forças de exclusão. É a vida funcionando como no tempo dos animais.
Resistir com os corpos:
Mas, ao aprendermos como o corpo constrói, involuntariamente, esses reflexos, podemos trabalhar, voluntariamente na sua desconstrução. É como desfazer um enfeitiçamento e acordar. Experimentamos, então, a possibilidade de nos vivenciar como os corpos que somos e gerar os comportamentos necessários para sustentar nossa conexão com redes, próximas e distantes. A rede mundial do mercado, como sabemos, é explorada por uma reduzida rede de poder que corresponde a 1% da população. E nós, os restantes 99%, somos a multidão de corpos comuns.
Diferentemente do que tenta e muitas vezes consegue nos convencer, nossa força está exatamente em não sermos especiais. Nossa força está em lutar e amadurecer para a evidência de que a vida se dá em rede e que é possível funcionar como parte. Deter-se sobre a presença física, suas intensidades, sua forma e suas conexões, nas diferentes condições que vivenciamos, passa a ser a base do que hoje se chama o “bem viver”.
A seguir, o próximo passo é a prática, a ser constantemente cultivada, de identificar-se corporalmente com a forma das ações que produzimos para sustentar nossa presença, sintonizando, sempre, com o sentimento que se desprende daí. A realidade corporal passa, então, a nos guiar, mais e mais, na relação com outros corpos e na criação conjunta de ambientes mais oxigenados – porque reais e presentes. Esse é o pulo do gato.