Várias razões me levaram a escolher este caso para apresentar neste encontro. Mas, talvez, a mais importante delas seja o fato de que iniciamos juntos, Jorge e eu, há 4 anos atrás, cada um em sua paralela, um grande esforço de singularização: eu na clínica, ele na vida.
Há duas semanas atrás, numa espécie de comemoração, rememoramos a trajetória do nosso encontro e ainda, agora, me espanto como, daquele emaranhado de dor, pânico, desespero, foi possível ir se desenrolando um fio e, gradativamente, ir se tecendo uma história em progressão.
Em janeiro de 92, chega-me ao consultório, encaminhado por uma osteopata descrente de podê-lo ajudar, um estranho homem, molambento, contrastando sinistramente com o meu elegantíssimo recém-inaugurado consultório no vigésimo terceiro andar de um edifício médico das Perdizes. Está imerso num descontrole total. Entre soluços, lágrimas, catarros e vômitos, me faz saber que não encontra maneira de estar no próprio corpo, tantas dores sente por todos os lados, que está sob violenta compulsão de buscar sexo sem parar por ruas, cinemas e saunas, e que acaba de fazer uma obrigação no candomblé, o que lhe impõe 21 dias de abstinência sexual.
Quando digo que contrasta sinistramente com meu belo consultório me refiro à súbita angústia que senti, pressentimento ruim, como se naquele momento da minha vida em que eu havia idealizado, parafraseando Virginia Wolf, ”um teto todo meu”, um espaço só para mim, na segurança do meu canto, sozinha nas alturas, onde pudesse refrescar minha visão das pessoas, experimentar outros autores, outras coreografias clínicas, o próprio excessivo se houvesse atravessado em meu caminho.
Poderia não tê-lo aceito, tê-lo reencaminhado, mas acredito que a intensidade daquele caos, pensando retrospectivamente, se apresentou como um oráculo, como o hexagrama 3 do I Ching, ”Dificuldade no começo”: ”Os tempos de crescimento são atacados por dificuldades. Assemelham-se a um nascimento. Mas essas dificuldades surgem da própria profusão de tudo o que está lutando para ganhar forma. Tudo está em movimento. Portanto, se a pessoa persevera, existe a perspectiva de grande sucesso. Quando o destino de alguém é empreender um novo começo, tudo ainda está informe e escuro. Portanto, deve-se esperar porque qualquer movimento prematuro pode trazer desastre.”
Esse momento, visto da perspectiva de hoje, mostra-se como um “middle ground” na linguagem de Keleman, uma “desterritorialização”, na linguagem de Guattari, para mim e para ele.
Para mim, no sentido de que estou iniciando em 92, com a leitura de Guattari, um processo de tentativa de apreensão da dimensão polifônica da subjetividade, de modo a tentar compreender sua múltipla causação e ao mesmo tempo tentar ultrapassar a oposição clássica entre sujeito e sociedade. Estou tentando nesse momento, colocar entre parênteses temporariamente minhas referências psicanalíticas e tentar compreender o que quer dizer Guattari quando afirma: “A psicanálise não está preparada para enfrentar o coquetel subjetivo contemporâneo por sua maneira de reduzir os fatos sociais a mecanismos psicológicos. Nessas condições, parece indicado forjar uma concepção mais transversalista da subjetividade que permita responder ao mesmo tempo a suas amarrações a territórios existenciais particulares e a suas aberturas para sistemas de valor com implicações sociais e culturais.”
E o estudo de Keleman caia aí como uma luva no sentido de propiciar uma visão e um instrumental clínico que aborda o processo formativo do sujeito em suas dimensões etológicas e ecológicas, além de coincidirem ambos numa visão construtivista da subjetividade : formativa, no dizer de Keleman, autopoiética, no dizer de Guattari.
Aos poucos, amparando Jorge de cá e de lá, num gestual um pouco de enfermeira, munida de meu espírito sociológico, vou colhendo fragmentos – o mundo gay está convulsionado pela explosão da AIDS, seu território existencial está à deriva.
Meu olhar de etologista e estudiosa de Keleman fazem seu primeiro achado: aquele animal se encontra sob a ação violenta de uma resposta do tronco cerebral em face de ameaça de extinção a seu território existencial, não propriamente por parte do vírus, mas por parte da mídia.
Seu corpo constitucional mesomórfico, quadrado, como o de um aldeão português, sob a violenta ação do reflexo de susto, está moendo suas articulações e tendões, com seus músculos poderosos.
A repetição compulsiva dos rituais sexuais, num “ritornello” endurecido, vem se constituindo até essa altura o único modo de interromper, de tempos em tempos, os fluxos em deriva vertiginosa.
Rapidamente, o encontro terapêutico passa a se constituir, duas vezes por semana, num ritual de alivio e conexão: deitando-o no chão, propicio descargas convulsivas de tônus muscular.
E, aos poucos, vou recolhendo e costurando sociologicamente os relatos de como um rapaz de família modesta, ao terminar o colegial em escola frequentada por filhos da burguesia intelectual de esquerda fica sem lugar de pertinência social e parte, desarvorado, primeiro em busca de homens bonitos, masculinos e orgulhosos da própria imagem, para tentar absorvê-los em seu corpo, e, em seguida, por alguns anos, encontra sua turma na então florescente, militância gay.
Abrandada a primeira camada de pânico que o tirava totalmente do contato consigo mesmo, encontramos o corpo da dor. Na nossa rememoração de alguns dias atrás, ele me diz: ”a terapia naquele momento me fez tocar em mim mesmo e ver como tudo era muito dolorido”. Literalmente, ele e eu tocávamos em suas dores físicas e psicológicas enquanto iam surgindo seus relatos: a família vivia no interior, os pais saem para trabalhar, o irmão mais velho, bonito, proferido da mãe, fica na chefia da casa e espanca os irmãos menores, na turma dos meninos de rua busca ser protegido pelo menino mais velho e mais bonito e é “flagrado” sendo “comido” por ele – essa cena do “viadinho” alimentou por muitos anos tanto sua humilhação como suas fantasias eróticas.
Na verdade, essas primeiras recordações, são a visão desqualificada de suas origens face à origem idealizada do mundo dos amigos idealizados perdidos com o final do colegial.
Discriminamos, então, a experiência da dor produzida na musculatura intercostal pela rigidificação da caixa torácica, da experiência da dor produzida pelo encolhimento da musculatura da bacia. O tórax fala da raiva impotente do animal menor face ao animal mais forte e a bacia fala dos impulsos sociais vergonhosos face ao ambiente humilhador.
Começamos então a sanfonar essa camada espástica tanto através de corpar gestos e atitudes do irmão poderoso quanto organizar a raiva reprimida, juntamente com os sentimentos de vingança, com morte violenta desse irmão na juventude.
O passo seguinte foi o reencontro com o menino.
Numa viagem de trem à cidade natal, Jorge revisitou esses anos de infância. Avalanches de lembranças trouxeram de volta o medo, as brincadeiras solitárias, os cheiros, os animais, as cores: experimentou pela primeira vez aquilo que Keleman chama de “long-body”, o corpo que sempre esteve aí, um sabor de si mesmo, o sentimento de “keeping on beeing” de que fala Winnicott. Parece ter constituído, nesse momento, uma confiança de que não iria mais ser aniquilado.
À medida que essa camada vai se flexibilizando com a experiência da fragilidade, começamos a sintonizar com a ausência do pai visto como sem função num mundo totalmente preenchido pela mãe professora, provedora e severa, a busca compulsiva de corpos masculinos, a força da primeira relação erótica interrompida pelo flagrante.
E, pela primeira vez, em muitos anos, se fixa numa relação com um rapaz muito pobre, quase michê.
É muito importante referir aqui o quanto os escritos e meus contatos pessoais com Nestor Perlongher, argentino, poeta, antropólogo e gay, também conhecido de Jorge, nos ajudaram a legitimar essa micropolítica, alimentaram nossa discussão sobre o “devir gay”, sobre a formação de uma subjetividade gay no campo social e sobre a qualidade de sua busca homoerótica pessoal: seu tesão pelas características do corpo masculino, a intimidade da masturbação a dois, o prazer de ser penetrado.
Juntamente com a discussão sobre a normalidade e sua idealização melancólica de pessoas felizes, começamos a pesquisar as questões de inferioridade e superioridade contidas em seu peito inflado.
Repassamos, então, todo o panteão de figuras masculinas: o pai quase analfabeto caixeiro de loja, o tio militar, o garoto filho do prefeito de sua cidade natal, o rapaz bonito com quem transou pela primeira vez, e mais detalhadamente, os dois grandes amigos de famílias burguesas de esquerda que partiram para destinos tão diferentes do seu ao terminar o colegial.
Nessa fase, exercitamos desenhar somagramas de todos esses corpos masculinos, corpá-los, sanfoná-los, num ritual quase antropofágico dessas identidades.
As pernas absurdamente espásticas e doloridas não acompanham o processo plástico pelo qual passa seu tronco.
Decidimos, então, tentar um processo de Rolfing, simultâneo com o processo terapêutico, agora semanal.
Ao mesmo tempo, nos perguntamos, como essa mãe, professora de interior, teve a força de colocar seu filho na melhor mais moderna escola secundária ao mudarem-se para São Paulo?
E também, por que não as mulheres?
É importante dizer que Jorge, ao terminar o colegial, enquanto seus amigos se encaminham para a música e o cinema, campos que só filhos de famílias intelectuais abastadas podem bancar, encaminha-se para a faculdade de letras que lhe abriria a profissão de professor, fio condutor de toda a tradição familiar materna.
As pernas espásticas que se recusavam a lançar raízes em algum solo psicossocial abrandam, e, por baixo da rigidez externa de seu tronco, já trabalhada e multiplicada em muitos graus de mais e menos forma dentro de um continuum, surge uma camada mais profunda inflada, informe, expandida.
E com essa camada, apresenta-se a mãe e o histórico das interações com o mundo materno.
Na contextualização dessa relação, mais ainda do que a compreensão teórica dos vínculos de dependência, me foi da maior valia meu gosto pelo cinema onde aprendi a reconhecer as sagas familiares e as linhas institucionais que funcionam como vetores do desejo-produtor-de-futuros.
Quem é essa mãe poderosa que tudo dá e tudo exige?
A classe média paulista do interior teve no professorado um dos seus maiores organizadores.
Precursoras das feministas, as moças saíam de casa para estudar em São Paulo, na Escola Caetano de Campos, ou em Itapetininga, nas Escolas Normais Superiores e em seguida, concursada na rede pública de ensino, eram alocadas em cidades do interior paulista.
A figura da mãe que trabalha, severa, identificada com a ética de excelência do professorado paulista, que provê a casa, que é mãe e professora de seus filhos, cuja vida é batalhar, surge com toda a força nas nossas sessões, à medida que acessamos essa camada interna.
A mãe que aparece aí é a mãe que quer tudo para seu filho e que o castiga enraivecida na escola, atropelando seu aprendizado; que o coloca mais tarde em uma escola acima de suas possibilidades inclusive de classe social; que o provê com dinheiro para que se aventure pela Europa como os jovens brasileiros fazem nos anos 7O.
De onde essa mulher tirava seu dinheiro, só Deus sabe – provavelmente um combinado de segurança de funcionária pública com a dignidade da profissão de professora dos primórdios, certamente, a sustentou em sua determinação.
Podemos dizer que, à medida que, no processo brasileiro, a professora empobrece, mais essa mãe alimenta seu filhos para que cheguem em algum lugar.
Podemos dizer que um esforço de ser alguém domina o campo existencializante de Jorge – ser um homem no mundo dos homens, levar adiante a família, a pequena classe média, o professorado, resgatar-lhes a dignidade, manter sua beleza antiga no panorama socio-político atual.
É preciso que se diga que Jorge é professor numa escola de bairro popular: iniciou uma pós-graduação, é concursado pela rede pública, é dedicado ao trabalho com as crianças de classe baixa, envolvendo-se com suas dificuldades.
Entretanto, essa camada inflada nos diz que a mãe, excessivamente provedora, criou um filho incapaz de sustentar frustração, com muita dificuldade de se organizar diante de situações que exijam tempo, ritmo, passo a passo.
Revela-se, nesse momento, a pessoa desmazelada ao extremo, comilão, desmedido, que age por impulso, que perde as próprias coisas, inclusive dinheiro, que entra em pânico com a idéia de sustentar um esforço como a tese de mestrado, que se expõe a situações de perigo como o envolver-se com sexo de rua, que por morrer de medo de ficar sem um corpo para se relacionar, não se dá um tempo para ser seletivo.
Juntamente com essas descobertas, o corpo inflado começa a ser domado, organizando também graus de pulsação.
Nessa fase do seu processo, predominam os choros de impotência e o medo de crescer.
Coincidentemente, nessa fase da terapia, a mãe adoece gravemente, e Jorge tem a oportunidade de organizar duas coisas:
– um corpo doador para a mãe enferma;
– um corpo de aproximação para o pai.
Pela primeira vez, quando sonha com os pais idosos transando, como no filme “Chuvas de Verão”, pode enxergar um grande amor entre os pais e me conta como eles se conheceram numa cidade de interior onde a mãe era professora: o pai bronco, galã, romântico, vendedor, filho de sitiantes, quase analfabeto, conquista o coração e o tesão da nossa proto-feminista, dedicando sua vida a acompanhar essa mulher determinada e encantadora.
Com o episódio da doença, a família, antes dependente da força centralizadora da mãe, se organiza de modo muito mais cooperativo.
Pudemos nos perguntar, nessa época, através de que conjunção de fluxos, o irmão e a irmã mais novos que ele se encaminharam para escolhas heterossexuais e se casaram.
As pernas, já menos espásticas, começam a lançar raízes em sua realidade existencial, o peito a se mover com sentimentos amorosos, a camada interna se retrair para que o Outro comece a existir.
Na interface da camada inflada com a rígida, descobrimos um corpo curiosamente denso que o apequena e o faz apegado.
Nessa época, tem um sonho em que aparece caminhando abraçado com a mãe e alguém pergunta se eles são namorados.
A mãe diz “não, ele é meu filho” e o entrega para a pessoa que lhe faz a pergunta que é um construtor amigo da família.
Exercitamos muitos graus entre o apegar-se e o desapegar-se.
Resolve começar a aprender a nadar e retoma tese de mestrado que era um dos fatores do pânico na época da busca da terapia. Isto é, o auto-construtor começa a se organizar a partir da sanfonagem do corpo denso e do trabalho de coordenação motora do rastejar e do engatinhar.
Na nossa trajetória a dois, enquanto Jorge vai se apropriando de suas camadas somáticas e existenciais, eu vou me apropriando teoricamente da visão kelemaniana da constituição do self somático emocional em múltiplas camadas de tecidos, em diferentes estados pulsáteis.
Nessa fase, a bagunça e a comilança se apresentam com tudo. Seu caderno de sonhos e somagramas é um lixo: legítimo caderno de último aluno da classe.
Através da sua empatia com os alunos, vamos trabalhando o seu desespero face à escrita, retomado uma evolução interrompida nos seus processos de aprendizagem.
Sua vida amorosa, após um tempo de namoro com o cara pobre-quase-michê e uma volta mais cuidadosa para o mundo das saunas, se estabiliza numa relação com um mecânico que se diz heterossexual, na época noivo e depois casado.
Durante o último ano e meio, acelerou-se o processo de tessitura de corpos e linguagens para dar conta das intensidades de seu mundo: o reconhecimento de sua metodologia de trabalho com os alunos de periferia foi lhe permitindo fazer sua montagem teórica; os sonhos o conduzem para os conflitos identificatórios com os tios, também professores, que lhe transmitiram o modelo de profissão mas também o mal estar sexual, juntamente com a moralização azeda sobre as manifestações da sexualidade adolescente para com as meninas; com o namorado, vai apaziguando sua carência ,à medida em que vai se montando uma espécie de amizade sexual, com as devidas distâncias e mútua ajuda, entre duas pessoas de mundos tão diferentes.
A construção da tese prossegue, vive conflitos de autoridade com a orientadora, se apavora com a questão da reprovação.
Sente a progressiva ligação entre o peito e a barriga com um afrouxamento do diafragma.
Sonha com o bebê recém nascido de sua irmã e se reconhece realizando desejos de paternidade, na proteção a seus alunos, e de maternidade, na gestação da tese, experimentando em seu peito sentimentos de suavidade e ternura.
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Na sessão imediatamente anterior à rememoração que me permitiu a escrita deste texto, ele chega dizendo:
”Você sabe, a relação com Fulano tem coisas ótimas, está menos machão, me toca mais, curte comigo a fantasia do primeiro cara que me comeu, a história do “viadinho”, como se ele fosse o menino mais velho que vai me ensinando a usar meu corpo masculino. Mas eu tenho a maior cisma porque, cada vez que ele vem, sempre acaba me pedindo alguma grana. ”Ao que lhe pergunto ”Quanto?”. Ele me diz “Trinta paus”. Eu lhe digo” Se ele fosse michê você acha que ele ia se abalar de ônibus da zona leste com toda a beleza que você diz que ele tem, até a sua casa, só por causa de trinta paus?” Ao que ele me responde às gargalhadas ,pela primeira vez “Eu sempre tive vergonha de te dizer, mas eu sou pão duro para caralho.”
Com a descoberta, finalmente, do perverso que quer tirar vantagem sozinho, a idéia de aceitar meus convites de continuar em grupo seu processo terapêutico torna-se uma coisa viável e desejada.
Provavelmente, após esses longos 4 anos de etapa formativa, entraremos num ending no que diz respeito à nossa relação dual e Jorge iniciará outro middle ground, desta vez num processo de socialização com seus iguais dentro de um grupo.
REGINA FAVRE
ÁGORA-Workshop Institucional de l995.