Ao usar tecnologias de imagem para captar e estudar os corpos no ato de se fazerem, fazendo o que fazem para estar presentes e funcionar dentro de uma certa dramaturgia que vai se tecendo, estamos investindo numa epistemologia da ação.
Essa ocupação coletiva com estudar lidando com imagens, registro, tecnologia, grupalidade, conversa e experimentação permite e mesmo exige o acesso aos modos e comos de os corpos operarem o acontecimento grupal.
Viver o processo formativo no processo grupal… gravar e rever… prosseguir absorvendo o vivido em seu presente, aprendendo consigo mesmo como os corpos se produzem continuamente no acontecimento… produzir sempre novas experiências sobre experiências anteriores gerando mais camadas de experiência… contemplar as gravações… aprender a ler as mutações do vivido sobre os corpos… dar corpo às ações e sentido às configurações corporais … problematizar ao vivo… produzir diferença aplicando a linguagem formativa em estudo…vivenciar, apreciar e praticar as novas conexões e realidades que a diferença dispara. Camadas de realidade somática se seguirão, mais e mais, buscando incluir sempre a diferença produzida e um novo modo de funcionamento no ambiente. E o COMO, se apresentará como a chave para o aprendizado dessa filosofia prática que lida com o manejo do processo formativo de corpos e mundos.
Este grupo, protagonista de um episódio que utilizo aqui para mostrar o processo formativo em funcionamento, vivia seu primeiro encontro no seminário presencial no Laboratório do Processo Formativo, antes da pandemia. Após a seleção dos participantes em um encontro anterior a que chamávamos de Degustação, estávamos iniciando um processo de dois anos de encontros no ambiente que denominei de Instalação Didática que eu defino como tecnológico-vincular. Tratava- se ali de um começo e era isso o que tínhamos a viver e captar simultaneamente. Sem facilitações. Todos compartilhávamos da mesma dificuldade que era começar alguma coisa.
O grupo foi imediatamente apresentado às ferramentas do formativo e a primeira instrução, antes de tudo, era que cada reconhecesse como estava corporalmente organizado. Atenção, leitor: a organização corporal no acontecimento expressa o que estamos fazendo, aqui e agora. É com esse corpo, nesse conjunto de ações estabilizadas, nessa forma, nessa organização, que vivemos o que estamos vivendo, dentro do acontecimento. Esse é o sentido do que se está vivendo. Ações não são movimentos no espaço, mas, antes de mais nada, são organizações de si que geram tal ou tal efeito nos ambientes, interno e externo, que nos conectam com esses ambientes de tal ou tal modo, nos fazem viver isso ou aquilo, e aparecem no espaço como uma certa configuração de um si.
O processo formativo lida com a continuidade dos corpos no mundo. E é sempre com o problema do prosseguimento que nos cabe lidar, seja em grupo ou individualmente. Naquele primeiro encontro, o problema que se apresentou era como colocar em andamento a produção de ambiente em uma condição em que o silêncio se havia instalado em cada corpo, nos primeiros momentos de uma grupalização. O silêncio evidentemente era o problema a ser trabalhado. Aprendemos sobre corpos apreciando, no ato, seus modos e comos, ou seja, o como fazem o que fazem e o como vivem o que vivem. Seja na clínica, seja no ensino, devemos ajudar o grupo ou o indivíduo a perceber que esses modos e comos são formatações anatômicas, configurações de si, reconhecer essas configurações que se expressam pela tessitura muscular da presença em cada corpo. Desta maneira. Em situações fáceis como difíceis. Como você está aqui? Através de que ações muscularmente estruturadas você contém a si e se conecta com o ambiente de que está sendo parte?
Nesse primeiro momento grupal aqui retratado, cada corpo estava funcionando em modo-silêncio. Não se pode esperar que os corpos façam diferente do que estão fazendo. Por essa razão, só faz sentido extrair exercícios ou experimentações, como se queira chamar, do acontecimento em curso. Isso é muito diferente de exercícios de mobilização ou facilitação de grupos. A essa operação, seja no ensino seja na clínica, chamo de problematizar. O que está acontecendo? Passo 1.
Problematizamos como uma maneira de afinar nosso funcionamento, ao vivo, com o processo geral. Afinamos para prosseguir. Todos podem sentir em si, todo tempo, a pressão da vida para prosseguir. Prosseguir significa se engajar na continuidade da produção de corpo, ambientes, linhas de vida, redes, seguir o programa do vivo. Todos os corpos vivos, queiram ou não, estão destinados a gerar seu futuro, como diz Keleman.
O design de uma forma é o seu próprio modo de funcionamento. O grupo estava em silêncio, profundo silêncio. Mas o silêncio em cada um está organizado de um certo modo. E cada um poderá voltar-se para si e captar-se em seu silêncio. Esse é o pulo do gato. Como cada corpo faz o seu silêncio? Como realiza a ação de silenciar? Como é seu design? Como é o seu modo de produzir silenciar? Como? Passo 2.
Captar-se é diferente de imaginar ou observar. Captar-se é reconhecer-se e identificar-se com o como estou fazendo esta configuração anatômica, esta postura, esta atitude, esta presença. Postura, atitude, forma, organização de partes, funcionamento, resultam no que se chama comportamento. Comportamento é o que estou fazendo, é um certo conjunto de ações. Captar como estou me comportando é a chave. A organização postural me mostra a atitude, o funcionamento, o que estou fazendo. Perguntamos a nós mesmos o que estamos fazendo para ser parte de um certo ambiente? Para o pragmatismo americano o que importam são as ações. O pensamento formativo é um descendente direto do pragmatismo americano.
O corpos, nesse campo em particular que estamos descrevendo, estavam silenciando. Cada corpo está como? Fazendo silêncio como? Como passar do anatômico para o emocional, para o existencial? O que estou fazendo? Como estou me comportando aqui e agora para fazer minha parte nesta cena, nesta configuração de um ambiente. Atenção que nesse ponto é muito fácil iludir-se com as retóricas, com as belas palavras, produzir idealizações, aplicar julgamentos.
Falo então com o grupo: Como você usa a sua anatomia para silenciar? Como se modela o silêncio em você? Capte essa forma que se chama silenciar. Silenciando… é o que você está fazendo. Os corpos estão sempre fazendo alguma ação, de algum modo.
Estou ajudando corpos silenciosos se fazerem perguntas bem concretas. Como agrego partes da minha anatomia particular para modelar o ato de silenciar? O que faço com o este peito, com esta barriga, com este assoalho pélvico, o que eu faço com esta garganta, com estas costas, ombros, dentro da cabeça, etc, etc? Como convoco partes, direções de forças e produzo silenciar? Pode-se a essa altura anotar nos cadernos não esquecendo jamais Darwin e os naturalistas viajantes, anotadores da natureza. O ponto é: como você faz? No caso, como você faz esse comportamento de silenciar? Como corporifica essa estratégia inata de todos os animais para não serem notados pelo predador?
A instrução ou consigna é fazer uma pequena descrição, notas sobre as ações envolvidas nessa ação de silenciar… levantar, apertar, dispersar, esticar… aqui, ali, isto, aquilo…. procurar os verbos… reconhecer as ações que a estrutura anatômica particular de cada um faz sobre si mesma para silenciar. O que queremos aqui é aprender sobre os corpos e aprofundar sua identificação com suas ações. O como é descritivo.
A seguir, devemos usar essa descrição como um conjunto de ações sobre si mesmo para imitar o que você faz involuntariamente para, no caso, silenciar. Você vai tentar fazer intencionalmente o que você captou e descreveu desse comportamento que aconteceu instintivamente. Ao repetir, intensificando a consistência da forma e desintensificando a mesma ação várias vezes, você confere e amplia sua descrição: apertar, esvaziar, encher, endurecer, soltar etc. aqui e ali… Esse, na Prática de Corpar kelemaniana é o Passo 3. Esse é o momento para se esboçar um desenho dessa forma. Keleman chama isso de somagrama. Faz-se um contorno da forma e indicam-se as ações exercidas sobre si para se fazer o que se está fazendo. Usam-se flechas, linhas mais fortes, pontilhados etc… O desenho deve mostrar como você faz corporalmente para produzir isso ou aquilo, no caso do grupo em questão, silêncio.
Você estará começando a fazer ao mesmo tempo uma cartografia deste acontecimento. O acontecimento é uma paisagem viva. E a cartografia é uma descrição gráfica e verbal dessa paisagem onde os corpos são produtores e produzidos, a forma desenhada e experienciada permite que aquele corpo reconheça seu modo de conexão com aquele ambiente ou como você é parte de uma produção coletiva. Com sua postura, sua atitude, sua forma que no caso é o seu silenciar, cada um ali é parte, produtor e produzido, neste acontecimento que é, no caso, silêncio grupal inicial. Como cada um está sendo parte desta paisagem?
Com essa pergunta começa a produção coletiva de uma cartografia. Já tínhamos a descrição do comportamento. Podíamos avançar. Como modelam-se as intensidades em cada corpo para produzir isso? Isso é uma expressão, uma resposta, um comportamento… únicos, embora genéricos… que ações cada um exerce sobre si para produzir isso, esse comportamento em questão? Dizer comportamento é o mesmo que dizer funcionamento que me conecta de certo modo a ambientes.
Ao se identificar com a forma do comportamento de silenciar, ali presente, no caso, cada um vai perceber que intensidades são excitação biológica face ao acontecimento e que cada corpo em particular responde de um certo modo ao acontecimento no qual está imerso. Acontecimento, vamos definir assim, é a configuração do presente, o estado de coisas de que sou parte.
A excitação preenche um corpo de si mesmo… vivifica as partes anatômicas envolvidas na resposta ao acontecimento, que, no nosso caso, é silenciar.
Como cada um responde a este acontecimento de que todos são parte, a essa ecologia mínima que é este acontecimento? Como é o modo particular de silenciar de cada corpo? No silêncio face o grande estranhamento com o ambiente tecnológico da Instalação Didática, o que fazer nesse ambiente, que palavras emitir com esse corpo para dar expressão ao vivido ali?
Resumindo o protocolo do corpar que nos guiou:
- Num primeiro momento, fizemos a descrição daquilo que se captava enquanto forma anatômica presente.
- A seguir, usamos essa descrição para repetir intencionalmente essa forma do silenciar, só que de maneira mais nítida. Usam-se todas a indicações, que a descrição (como é) fornece.
- Agregar, então, intensidade muscular a essa forma, intensificando-a, fazendo-a com mais nitidez, colocando um grau a mais de tônus …ou um grau a menos…. fazer variações neuro-motoras de intensidade e amplitude na configuração captada.
Com esse procedimento extraído e amplificado do exercício dos cinco passos de Keleman, estamos também, finamente, vivificando essa forma e sua pulsação. Esses três primeiros passos servem, para que um sujeito possa intencionalmente se colocar na ação que se fez nele involuntariamente. Esse identificar-se com a própria ação como um design anatômico no presente começa a nos encaminhar imediatamente para reconhecimentos mais amplos para além do nossa vida individual. Começamos a nos identificar como produtores de ambientes a partir dessa potência produtiva dos corpos que estamos identificando em nós. Estamos começando a captar como corpos e ambientes se fazem continuamente, a acompanhar e intervir no processo natural dos corpos de secretar a si mesmos. Cada corpo está gerando mais corpo continuamente. Os corpos não são um objeto no espaço, mas um processo no tempo, como diz Stanley Keleman, o autor com quem aprendi o processo formativo.
Nesse momento que se segue aos três passos descritos, os corpos pausaram, de modo visível, em sua pulsação excitada incubando uma nova resposta certamente mais afinada com a demanda do acontecimento em curso. Diria que os corpos ali se esboçavam o impulso de formar um novo comportamento. Vejamos. O processo formativo trata dessa potência e seus comos. A essa altura, cada um no grupo já disporia de condições de mostrar isso que já estava à mostra: sua forma de participar deste ambiente. A isso chamo de solo. Ao mostrar como somos e quem somos estamos produzindo solos.
O solo em questão dizia respeito a mostrar para o grupo o como de cada um para modelar suas intensidades e produzir o silêncio que era o ambiente em questão, no presente. O comportamento de silenciar que antes isolava, começa a constituir inclusão e encaminhar uma produção coletiva de ambiente. E o que havíamos reconhecido inicialmente como efeito de uma ação imobilizadora, o silêncio, passa a se revelar como um instrumento para a constituição somática da presença.
Para mostrar, fica-se em pé. Assim utiliza-se plenamente a estrutura. Estamos habituados a considerar as ações expressivas a uma modelagem circunscrita a uma certa área, por exemplo, uma boca que faz conexão através de um sorriso. Mas, o restante do corpo se modela, simultaneamente, nas diferentes camadas e estruturas anatômicas que compõem um corpo para que se produza presença. Isso gera as notas complementares da experiência principal. Nesse sentido a Anatomia Emocional é preciosa, revelando as diferentes camadas de experiência e tecidos.
Pergunta-se: como faço o que faço? Essa pergunta vale para cada ação do nosso contínuo de ações na continuidade das nossas vidas. Dentro daquela realidade grupal aqui narrada, evocava-se o design particular de como se silenciava. Com essa recomendação não estamos buscando criar nada artisticamente, não queremos nos livrar de hábitos, não queremos diagnosticar padrões neuróticos de funcionamento, não queremos representar nada, mas queremos praticar intencionalmente o que os corpos fazem todo o tempo para se manter coesos e conectados: ações sobre si mesmos. Insisto: não se trata de uma ação no espaço, mas ações sobre si. As ações e o deslocamento no espaço (movimento) são uma consequência de um conjunto de ações sobre si, bem como bombeamentos da excitação.
Para aprofundar uma relação neuro-motora com nossos solos ou expressões no mundo, devemos fazer então ensaios-esboços e a seguir intensificações, isto é, definirmos melhor, muscularmente, nosso modo de fazer uma ação. A intensificação torna mais claro aquilo que se faz imperceptivelmente. Estamos com esse procedimento ligando mente e corpo, estamos ativando o embodiment ou a corporificação. A intensificação permite que o córtex reconheça e registre uma configuração motora. Intensificar-se fazendo os aumentos de intensidade passo a passo, reconhecendo um design, testando suas amplitudes em graus aprendemos a influir sobre nossas ações.
Menos é mais recomenda Keleman, com sua praticidade americana, faça menos para se sentir menos representativo e mais agente do esboço motor em questão, assim você pode perceber esse comportamento, essa atitude, essa presença. Quando você faz a ação mais sutilmente, você vive a intensidade dela e identifica o sentido do que está fazendo. Identificar-se com o sentido do que se está fazendo. Estou fazendo isso, então uma nova forma se inclui no seu repertório. A Evolução salva comportamentos bem sucedidos. Filogeneticamente e ontogeneticamente. Uma ação bem integrada na memória da estrutura emana de você e se comunica com os outros corpos. As formas dos corpos conversam entre si formando novas redes. Podemos chamar isso de co-bodying ou co-corpar. Esse é o princípio da produção da diferença.
A essa altura, alunos se voluntariaram para fazer solos, mostrar com seus corpos comos silenciam:
… silenciar para a Natalia era contrair as costelas, mantê-las apertadas e ausentar-se do rosto…
… silenciar para o Sergio era imobilizar o diafragma torácico e desviar sua atenção do ambiente olhando para os próprios pensamentos….
… silenciar para a Ana Paula era contrair os tubos profundos e mantê-los contraídos…
… silenciar para a Dafne era esvaziar-se, zerar intensidades…
… o Caio faz seu silêncio levando os ombros para trás, os olhos para cima e o peito para a frente…
… o Fernando silenciava empurrando a nuca para trás e baixando a garganta…
… a Mariana contraía e desativava a excitação no tórax ativando um lugar para si na barriga….
O que pudemos vislumbrar nesse procedimento é que estávamos lidando com a possibilidade de editar nossos comportamentos estruturados… isso é o que chamamos de atualização de si, dos modos de conter as próprias intensidades e conectar-se com o acontecimento presente.
O autor de neurociência, Gerald Edelman, tem um livro que se chama The Remembered Present (O Presente Relembrado). De alguma maneira, nossa estrutura somática existencial, o que somos hoje, é esse presente continuamente relembrado. Sim, memória é o que prossegue funcionando enquanto não se desvanece em sua des-utilidade. Mas quanto mais mergulhamos no processo formativo e o ativamos, relacionando as ações com postura, atitude, forma, imagem, vamos trazendo para o presente essas formas. Vamos ativando sua potência. Comportamentos que estavam empobrecidos, minguados, vão sendo ativados, se diversificando em novas variedades de comportamento. Isso é trabalhar pela biodiversidade subjetiva ou produção de diferença ou, em outras palavras, propiciar o aumento da potência formativa e da potência heterogenética que devem trabalhar como duas mãos.
Experimentamos, nesse cuidado que tivemos com as formas do silêncio aqui descrito, um resgate e uma reativação de comportamentos. Vimos, passo a passo, como, ao reativá-los, de modo paciente, metódico e artesanal, reanimamos a potência de prosseguir produzindo a nós mesmos no presente.
Isso é a clínica que se pratica no ensino formativo, sempre em grupo. Mas também é filosofia, biologia, ecologia, política, literatura, cinema. A transversalização é essencial para o ensino do acesso ao presente seja uma prática filosófica e não uma técnica.
O presente é o desafio da funcionalidade da nossa forma. Como de todos os corpos ao longo da Evolução.
Reescrito por Regina Favre em maio de 2024