Em janeiro de 1972, durante um retiro zen-budista em Campos do Jordão, escrevi um poema com esse mesmo título.
Às onze horas, as onze horas amarelas
riem às gargalhadas para o sol,
com todas as suas pétalas.
A água entra na caixa,
as panelas batem na cozinha.
Atrás, na mata imóvel,
araucárias carregam o céu nos braços.
O sol se envolve em nuvens
e as onze horas se agitam nos caules,
em enérgico protesto.
A água entra na caixa,
as panelas batem na cozinha.
Volta o sol,
as onze horas sorriem agradecidas.
A vassoura canta
no chão de cimento
O Mestre Tokuda nasceu em Hokkaido, norte do Japão, em 1938. Diplomou-se em filosofia Budista pela Universidade de Komazawa, em Tóquio, em 1963. Em 1967 torna-se Monge Budista, ordenado na Escola Soto Zen pelo Mestre Ryohan Shingu. Seu nome de ordenação é Ekyu Ryotan. E de Ekyu vem de Eisai, mestre Rinzai que transmitiu sua linhagem no Japão na época de Mestre Dogen; Kyu era o nome de leigo. Na composição de Ryotan, Ryo quer dizer “bom”, e tan significa “processo profundo”. Recebe então a permissão do Superior da Escola Soto Zen, Taiun Sato Roshi, para ensinar e ordenar monges zen. No processo de formação, pratica também com outros mestres do Zen Budismo como Nakagawa Soen Roshi, Sogen Asahina Roshi e Kodo Sawaki Roshi. Em 1968 vem para o Brasil como monge missionário, para trabalhar com o Mestre Shingu Roshi, que na época era o Primeiro Superior para a América Latina da Soto-Shu. O jovem Monge Tokuda passa a residir no templo Busshin-ji, em São Paulo. Trabalha como professor de língua japonesa e esportes para crianças e inicia um grupo de zazen no templo Busshin-ji. Entra em contato com brasileiros que expressavam forte interesse pelo zazen; aceita então convite de Simone de Zeunig e deixa a cidade de São Paulo, para residir em Campos do Jordão, SP, onde estabelece um grupo de prática. Para sobreviver, inicia trabalho com shiatsu, acupuntura e ervas medicinais seguindo a Medicina Tradicional Chinesa (Kampoh). Wiktor, meu companheiro, e eu participamos desse grupo desde seu início. Em 1974 aceita o convite da Sociedade Budista do Brasil, e assume o templo Theravada no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, funda uma sala de meditação em Copacabana. Mas nesse momento, Wiktor e eu, já estávamos bem longe, em Londres, seguindo a trilha de Caetano e Gil.
Sempre achei que o zen havia sido o portão para a cultura do corpo cuja existência eu já havia intuído embora não tivesse permanecido mais do que dois anos em contato com Tokuda. Os detalhes dessa genealogia onde minusculamente apareço, retirei do site da falecida cineasta zenbudista Tania Quaresma. É uma origem que me honra e que me explica.
A força do budismo zen se faz notar nas tramas dessa cultura norte americana do “body-mind” ou mais precisamente do “embodiment”, tendo me permitido absorvê-la sem maiores estranhamentos para dentro da construção de uma vida e de um trabalho desde os primeiros momentos dessa mutação pela qual passei precisamente aos 30 anos. No início dos anos 1970, meu primeiro casamento quebrara à sombra da quebra do casamento de meus pais, na verdade, uma quebra de valores acontecida no terremoto da história nesse início de década. Nesse exato momento passei a viver com Wiktor, judeu, criança sobrevivente do holocausto como outros judeus de quem me tornei amiga nesse preciso momento. Pensava, ouvindo as histórias do gueto de Varsóvia, como meus pais podiam fazer um drama tão grande diante de uma história de infidelidade conjugal? Por que tanta culpa e vitimização? A dependência e a fragilidade brasileira de classe média diante do sofrimento perderam precisamente ali sua legitimidade para mim.
E naquele momento, no corpo que se havia feito poroso com o desmanche de um modo-classe-média-brasileira-de-ser absorvi a força de sobrevivência de mães e pais judeus que imigraram durante e depois da Guerra para o Brasil carregando esses filhos ainda pequenos, mortalmente assustados. Esse foi o verdadeiro início de uma mutação: imigrar para outro mundo salvando a mim e as filhas de um mundo em dissolução e recomeçar a vida, o que foi realmente um salto quântico. As mutações ao longo de uma existência em particular têm essa caraterística herdada do processo evolutivo descrito por Darwin. Um corpo não encontra mais conexões com o ambiente onde a vida anteriormente se cultivava. Conexões são comportamentos, modelagens de si que se repetem e se estabilizam enquanto dura aquela forma de funcionamento que gera continuidade de um corpo e seu ambiente, daquele modo. Ao se tornarem obsoletos, seus contornos, brusca ou gradativamente, se diluem tornando os corpos, se estes não sucumbem à insustentabilidade, disponíveis para uma nova formatação adaptativa. Que sofrimentos, terrores e gozos inéditos se desprendem de um corpo tornado informe, imerso num campo desconhecido? Esses mesmos filhos, judeus de formação socialista, nessa precisa transição, com sua atitude política e suas relações de proximidade com a militância de esquerda naqueles terríveis momentos da ditadura militar, se tornam os amigos de convívio diário. Passo, então, a fazer meus primeiros esboços de um novo corpo precisamente com eles, co-corpando com eles, na expressão de Stanley Keleman, judeu também, que desempenhou papel central no roteiro da vida que construí em décadas seguintes, tal como descrevo em Do Corpo ao Livro.
Judith Lieblich Patarra, judia também, parte desse grupo, jornalista e também amiga daqueles anos, escreveu já no final dos anos 1980, a biografia de Iara Iavelberg. Com total abundância e precisão de detalhes narra a breve existência daquela diva judia da Faculdade de Filosofia da rua Maria Antônia, seu casamento de tenra juventude celebrado pela família e rompido tal como o meu em nome do desejo de viver sua transmutação no caldeirão do movimento estudantil, seu grande amor revolucionário por Carlos Lamarca, sua vida clandestina nos “aparelhos” urbanos e na luta camponesa. E, finalmente, sua morte heroica em um predinho no bairro da Pituba, cidade de Salvador, cercada pela repressão. Imagens de Iara me chegavam pelo boca-a-boca naqueles dias de ousadia, roçando aquele meu corpo já inteiramente desfeito da moça brasileira. Sentia, pulsando intensamente, o imenso mistério de alguém como eu, um quase duplo, longe, muito longe, escondida, fugindo, vivendo, morrendo, em meio à violência inimaginável. Quando Wiktor e eu, em 1971 aderimos finalmente à contracultura, ao rock, ao ácido, às motos, cruzando estradas, acampando em praias, viajando no Trem da Morte para a Bolívia, sentido a força revolucionária latino-americana, estávamos ressoando, convictos, com essas pessoas como Iara e tantos outros cujos nomes e fotos apareciam em cartazes com o sinistro cabeçalho Terroristas Procurados, que resistiam à devastação existencial em curso neste nosso país, uma devastação, como a que passamos a viver nos tempos bozo-pandêmicos.
A vida da jovem de classe média brasileira se mesclara inteiramente à vida do sobrevivente do holocausto e o simples estarmos vivos passara a ser celebrado intensamente a cada instante, até que o terror perfurasse as bordas frágeis daquele meu corpo criado na segurança perversa de um ninho brasileiro. Se, naquela virada dos anos 70, Wiktor atravessou intrepidamente essa dissolução identitária de uma vida de judeu, cientista, professor da USP, eu, Regina, não atravessei.
A moça brasileira filha de médico, formada em filosofia, publicitária, que havia se atirado subitamente junto com as filhas pequenas no prazer, na alegria na liberdade, no contato imediato com a vida, percebe que dera um salto no escuro, sem rede. A morte rondava o Brasil, o regime militar-empresarial exterminava ferozmente e eu estava longe das origens, bem mais perto desse abismo. Conheci ali os confins da desterritorialização com meus parcos recursos existenciais. Wiktor não se abate e mais uma vez enfrenta a morte com sua força de sobrevivente. Eu, subitamente esvaziada de tudo, mergulho numa bad trip sem fim. Não suportava mais nem um minuto não enxergar um futuro previsível. Mas não havia sido pouco o aprendizado lisérgico acompanhado do Livro Tibetano do Mortos, de Timothy Leary, daquilo que aprendi a chamar, bem mais tarde, com Stanley Keleman, de “ending”. Senti ali que precisava me deixar morrer. E morri.
Como fantasmas começamos aos poucos nos juntar a alguns poucos que por diferentes vias também haviam se afetado por ecos budistas que chegavam até o nosso deserto brasileiro de então. Mas esses ecos nos apontavam não para o horizonte japonês como se poderia esperar, mas para o lado oposto do Pacifico, a costa oeste americana. Anos depois me dei conta do que fizera movida por aquele impulso. Acontecia algo profundo e libertador nos Estados Unidos que havia sido tocado pelo budismo décadas antes e que só naquele momento chegava até nós.
Findo o desbunde, nos recolhemos no zen em busca da verdadeira iluminação. Como os primeiros desbundados americanos dos anos 50, esperávamos que aquilo que o LSD nos oferecia, insustentável em longo prazo, pudesse acontecer pela prática radical do corpo, imóvel e silencioso, no simplesmente sentar, guiados por um mestre, segundo um ritual de simplicidade milenar transmitido corpo a corpo, de mestre em mestre. Poetas malditos como Roberto Piva, o beatnik da São Paulo dos anos 1960, e As Portas da Percepção, de Aldous Huxley, que li aos 18 anos, ainda nos finais dos anos 1950, encontraram seu lugar com a vida contracultural que se instalou pedindo outro corpo para aquele início dos anos 1970. Aquele meu corpo libertado pelo ácido, pelo sexo, pelo contato direto com natureza, pelo rock, pelo riso, pelas aventuras com crianças e amigos, seguiu desta vez a rota de um treinamento exato, profundo, movido pela disciplina de si e não mais pelo estímulo das drogas.
Poucos anos depois, já me encontrava inteiramente desconstruída pelas práticas dessa jovem cultura americana da Psicologia Humanística na qual havia mergulhado na Londres dos early seventies. Ao visitar Stanley Keleman em Berkeley pela primeira vez em 1977, me deparei na clássica livraria alternativa Shambalah, situada na Telegraph Avenue, berço do movimento hippie ao lado do portão principal da Universidade da California, com uma completa história do budismo na América, intitulada “How the swans came to the lake – a narrative history of buddism in America”. Esse título maravilhoso que soava como um koan, desvendava para mim a marca do budismo naquela cultura que eu visitava, ali, pela primeira vez.
De fato, no inicio do século 20, contatos com acadêmicos americanos estudiosos da literatura japonesa se fizeram, propiciando que os primeiros monges vindos do Japão se dirigissem inicialmente para a Universidade de Honolulu e a seguir para cidades grandes da América, como Los Angeles, do outro lado do Pacífico. Imediatamente por acaso, narra Rick Fields, esse jornalista autor dessa fina pesquisa, esses mensageiros do dharma conhecem alguém, alugam um pequeno espaço urbano para instalar um pequeno do-jo, passam a viver na pobreza com o essencial, mantendo aquela inabalável confiança na vida e total disponibilidade para o acontecimento que só o zen transmite, e rapidamente passam a atrair pessoas tal como aconteceu com o sensei Tokuda e aquele pequeno grupo inicial que, espantosamente, em poucas décadas se multiplicou em vários mosteiros pelo Brasil. Nas cidades cultas norte-americanas em que o pragmatismo cresceu desde o século 19 como a primeira filosofia genuinamente americana, contando com a tradição religiosa pré-existente do Transcendentalismo, da contemplação da natureza e da praticidade da vida simples, o budismo encontrou condições extremamente favoráveis para contaminar esse país que se preparava para viver seu destino poético, filosófico e espiritual, não fosse sua entrada na 2a Guerra e o consequente boom econômico que se seguiu, gerando a sociedade de consumo, a american way of life, em relação à qual a “geração do corpo” se constituiu inicialmente, como uma deriva. A leitura desse livro que traz na capa fotos misturadas de monges, com gestos e sorrisos despojados de qualquer pose, esperou longo tempo na estante por sua vez, o que, na verdade, só aconteceu nos tempos de lockdown, me permitindo retrospectivamente compreender o tropismo que se instalara em mim naquele momento germinal me arrastando ao encontro dessa cultura americana do corpo cuja história é tecida com fios de muitas origens dentre as quais se destaca o fio do zen, brilhando infinitamente em sua perfeita simplicidade. Essa foi, então, uma primeira mutação. Desejo voltar mais adiante à familiaridade que senti com essa cultura, repito, do corpo, ou melhor dizendo em inglês, por falta de tradução adequada em português, do “embodiment”. Foi esse algo do zen que me permitiu farejar o caminho em direção ao pensamento formativo de Keleman.
Stanley Keleman, como o ouvi narrar muitas vezes, participou dos primórdios do caldeirão que deu origem ao que conhecemos como as psicoterapias corporais e as educações somáticas. Juntamente com ele estavam além de manipuladores de corpo, bailarinos americanos, educadores somáticos imigrados da Europa durante e no fim da 2ª guerra, mas no caso aqui que nos interessa, entre esses jovens inovadores estava Allan Watts, então presbítero anglicano nos anos 50, futuro genro do principal introdutor do zen na América, o famoso monge D.T.Suzuki, e que mais adiante, se tornou também monge e sobretudo divulgador do zen através de uma infinidade de livros e audiotapes. Keleman, por sua vez, encerrando sua experiência como group leader no Instituto Esalen, ambiente fortemente influenciado pelo budismo americano, no final dos anos 1960 dirige-se a Zurich para sua formação em psicoterapia existencial. Nesse momento, conhece o mestre zen e também psicoterapeuta existencial alemão, Karlfried von Durkheim, cuja amizade honrou pelo resto de sua vida Assim estavam constituídas, na minha percepção, as forças do campo para dentro do qual fui atraída em meu new beggining. Dentro do mencionado grupo de praticantes daquela experimentação cultural americana, transformadora, festiva e libidinal, estavam Erich Fromm, psicanalista e sociólogo, e Karen Horney, também psicanalista. Ambos, mais velhos e mais experientes, imigrados no pós-guerra, influenciados pela Escola de Frankfurt e também atraídos pelo o zen-budismo que se espalhava na América daquela década, eram nomes com os quais esbarrei já no inicio na década de 1960 em estantes de livrarias que eu frequentava no centro de São Paulo e na mesa de cabeceira de meu pai, homem moderno e ávido de mudança para seu tempo.
O zen, embora tivesse ficado quase como uma terna memória daqueles tempos iniciais de uma vida de total fragilidade, com a chegada do vírus e o isolamento que passamos a viver, emergiu como a primeira forma de vida que naturalmente se apresentou para mim: limpar a casa, lavar verduras, cozinhar, estudar, trabalhar, sentar em zazen online todas as noites com o grupo de meditadores do mosteiro Therigata a que uma das minhas filhas pertence. A querida monja Waho, que conheço desde seu tempo de menina, conduzia a prática e em seguida lia mestres do dharma para a sangha, com sua voz cristalina e firme, livro após livro. Ao final, todos desejávamos boa noite uns aos outros. Assim começou um novo processo adaptativo radical deste corpo, desta vez à vida na infosfera.