Publicado originalmente em Artecompostagem’21, lançado durante o IV Colóquio Metodologias de Pesquisa em Artes, do Instituto de Artes da UNESP – SP. A publicação na íntegra está disponível em
Resumo
Nos Seminários de Anatomia Emocional e de Biodiversidade Subjetiva que aconteceram ininterruptamente no Laboratório do Processo Formativo entre 2000 e 2017, estudamos e pesquisamos como os corpos se produzem e no mesmo ato produzem continuamente ambiente. Esse conhecimento simultaneamente conceitual e experiencial, prepara os corpos não só para a clínica do corpo subjetivo e outras formas de trabalho com a presença mas para a própria vida de toda e qualquer pessoa, artista ou não, que conceba a vida como obra de arte. A Instalação Didática (1) que criei ao longo desses processos de ensino e produção de conhecimento sobre o corpo visa antes de mais nada evidenciar na própria experiência de convívio e estudo imersos em um ambiente tecnológico de gravação, exibição, contemplação e prática que somos corpos que se produzem autopoiéticamente em ecologias. Na repetição através dos anos dessa experiência com esse dispositivo autogravante e generativo de material audiovisual e textual, aprender a não temer o desperdício foi o pulo do gato.
Um dispositivo e uma estratégia
Muitas ações se sucedem compondo as estratégias através das quais mergulhamos nessa experiência direta desse ambiente vincular e tecnológico que denominamos Instalação Didática.
Trata-se apenas de uma sala grande de grupo onde acontecem uma infinidade de ações normais: minhas falas, conversas entre e com o grupo, o desenrolar da teoria e dos exercícios extraídos do próprio acontecimento individual e grupal, a contemplação sim das vídeo-gravações do acontecimento grupal em um telão e um monitor de tv.
O simples dentro de um ambiente tecnológico e gravante é a estratégia essencial para a produção dessa forma de conhecimento do corpo em seu processo formativo .
Trata-se de assentar no estranhamento do simples. Complicamos o simples para que ele emerja através produção simultânea de fotos no e pelo grupo, da produção dos ovos cartográficos, da solicitação de solos de si dos participantes, das intervenções clínicas pontuais facilitadoras da continuidade, da escuta de narrativas da ciência evolutiva como se fossem mitos. Tudo acontece na simultaneidade e na abundância de imagens e rebatimentos, como alças de feedback sobre o acontecimento, resultando nessa produção de conhecimento vivo, de mais imagens, de acontecimento, de diferentes temporalidades, continuidades dos corpos, de presenças e de narrativas.
Nos encontros acontecem mensalmente ao longo de quatro ou cinco semestres, cada grupo estável apreende :
- O paradigma formativo desenvolvido a partir de Stanley Keleman, sua obra, sua prática filosófica corporificante e seu modo clínico de intervenção, em que o modelo do vivo se estende do molecular às formas existenciais dos corpos humanos, sempre dentro das mesmas regras de conectividade e agregação, e onde se aprofunda a visão e a vivência do corpo enquanto um processador ambiental em continua produção de si e de seus ambientes, em conexão com outros corpos. [2]
- Uma certa anatomia capaz de prosseguir formando a si e a seus ambientes a partir do vivido. Ou, em outras palavras, como os afetos se materializam continuamente em estruturas somáticas, ao longo de uma vida em particular, segundo a interação das camadas embriogenéticas, numa embriogênese continuada, do principio ao fim daquele soma em particular. (2)
- A visão do crescimento dos corpos, ao longo de seu destino genético de prosseguir da concepção à velhice, secretando corpo continuamente, modelando a experiência de si e desencadeando as formas da sua continuidade. [3]
- A identificação da necessidade de interações somáticas que possam oferecer ambientes confiáveis e tempos formativos para que os organismos subjetivos possam se constituir e se desenvolver no mundo. [4]
- O reconhecimento das formas do desenvolvimento em nosso corpo do presente, da fusão até a cooperação, em seus modos de se conectar com os ambientes. [5]
- A compreensão vivencial de que os ambientes onde se formam os corpos são ecologias, físicas, afetivas e incorporais. [6]
- Uma evidência de que o processo formativo de corpos e vidas se dá sempre dentro da história social e dos jogos coletivos de poderes, sentidos e de valores. [7]
- O manejo de uma lógica e uma gramática formativas que permitem reconhecer e estudar como fazemos corpo nos nossos mundos com essas forças e modos, sociais e vinculares, que modelaram e seguem modelando nossa realidade somática ou nossa fisicalidade.(7)
Continuamente são desenhados os “ovos “no grande quadro branco em forma de ovo na sala, contendo os diagramas do pensamento que vai se produzindo ao longo das ações. Eles organizam a experiência do processo formativo que vai se desdobrando nos encontros. Eles abrangem o como, o quando, o onde, as condições, os ciclos, os ritmos, os princípios dentro dos quais se produzem os corpos, sua relação com as linguagens, com a história social, com as imagens, com a biologia evolutiva, com as neurociências e com o ambiente relacional e tecnológico presente. Os ovos sustentam o descritivo e o cartográfico coerentes com esse modo de estudar o acontecimento corporificado. [8]
Os ovos apontam também com sua forma grávida para uma possibilidade de sempre mais, para o que ainda não existe, sinalizando que esse modo de notação do
acontecimento articulado à teoria kelemaniana da produção de corpo é uma força geradora de continuidade e pensamento. Os ovos são a mente do grupo, o mapeamento do vivido ali.(8)
À medida que as pessoas vão gradativamente assimilando esse saber em seus corpos e seu manejo formativo, em sua linguagem e em seus cadernos, vai se revelando, como uma realidade somática, que esses corpos imersos nesse campo corpante (bodying field) de cada grupo em particular, dentro dos ambientes maiores e menores, são bombas pulsáteis. [9] que funcionam como processadores ambientais. Através desse dispositivo, os grupos têm a oportunidade de viver em tempo real, o secretar e o modelar corpo, o intervir em suas formas através de práticas específicas, o maturar, no ato de co-corpar com as condições presentes, criando ligações que vão ganhando em eficácia na produção de si e da cognição. Keleman criou a expressão corpar, to body, para designar a produção contínua de corpo que vivemos. Co-corpar ou to co-body diz respeito à evidencia de que não se produz corpo sozinho mas sempre na interação com outros corpos, vivos e não-vivos.
No final do programa, o design existencial de cada corpo em suas ações e expressões preservadas muscularmente pela memória do seu uso repetido, amplia seus sentidos. Contemplamos, a essa altura do processo grupal, através do acervo de fotos de cada um, os corpos em suas modelagens vinculares e sociais, seus caminhos formativos, sua participação e modos nos diferentes ambientes e a construção de sua trajetória até o presente. Sempre iluminando a questão de como esse corpo e com que forças e combinações musculares sustenta sua forma e seu modo de funcionamento no presente. [10]
E finalmente, descobrimos, dentro da lógica formativa de cada corpo, como intervir sobre essa configuração, atualizando-a um pouco mais para que dê passagem às forças que alimentam sua continuidade. Trazer um corpo para o seu presente funcional é tudo o que importa em uma vida. Não se trata de um luxo pessoal ou narcísico, mas da realização da nossa condição de ser parte de processos maiores que o indivíduo e portanto da possibilidade de pensar e agir no presente.
No ambiente de imagens, nos seminários do Laboratório, imagens são colhidas todo o tempo, em vídeo pelo cameraman presente no grupo, em foto pelo próprio grupo com seus celulares, em registros por um relator também imerso no grupo.
As imagens, sejam elas das gravações ou das fotos, atuais ou da trajetória de cada um, entre outras muitas razões, são importantes para que se veja que os corpos são ação lentificada e solidificada em tecido e que estão sempre em ação, modelando ações, alguma ação, sobre si mesmos e sobre o ambiente, que os corpos são uma anatomia de tubos dentro de tubos, camadas, bolsas, diafragmas tal como descreve Stanley Keleman em Anatomia Emocional, pulsando, trazendo para si, conduzindo, processando através de uma infinidade de ações, em múltiplos níveis interconectados, moldando-se e expressando-se sobre o ambiente, articulando-se ou afastando-se dos outros corpos, de quase infinitas maneiras, sempre produzindo a si mesmo e aos ambientes de algum modo. A prática dessa presença produtiva é o coração do que desenvolvemos ali.
Esse modo de funcionamento em múltiplas camadas do acontecimento no ambiente-seminário resulta em um reconhecimento constante dos modos de funcionamento e uma relação cada vez menos narcísica, seja negativa ou positiva, com as próprias imagens, o que resulta numa naturalidade que é captada dentro da artificialidade evidente da presença dos elementos de gravação e exibição de imagem tornando-se o objeto central de estudo e criação. Captar imagens, deixar-se captar, assistir-se, reconhecer-se, exercitar gramáticas, praticar o ato de corpar segundo propõe Stanley Keleman em seu Método do Como [11], os diferentes aspectos do design anatômico de comportamentos, ações e expressões, problematizando-o e recolocando-o em trilhas formativas, vai formando e enriquecendo essa língua minoritária [12] dos grupos sob minha regência.
Como regente desse processo grupal em seu fluxo contínuo de presenças somáticas e ações que as sustentam, é, por excelência, o exercício do contato imediato e encarnado com o acontecimento vivo que me alimenta na criação da linguagem e do conhecimento formativos [13]. O acontecimento vivo, em sua metamorfose permanente, requer uma “posturação dos afetos , uma poética e uma oralidade específicas para que se comunique.
Um site e um acervo digital de vídeogravações, fotos e transcrições são um tesouro preservado a que podemos recorrer sempre, como vamos fazer na sequência.
Acredito que essa forma de trabalho que funde arte, clínica, ética e pesquisa seja um instrumento potente para as pessoas e os grupos que produzem conhecimento a partir da realidade das vidas e dos corpos. Acredito também que a Instalação Didática seja uma maquínica [14] bastante funcional para que se opere na imanência. É essa invenção que batizei com a expressão criada por Joseph Beuys que desejo oferecer aos pesquisadores de métodos em arte, leitores e escritores deste livro: um modo vincular multimídia de captar e editar as dramaturgias do pensamento encarnado. Um pulo do gato.
Vamos a seguir, acompanhar a protagonização de um aluno em certo ponto de sua educação formativa.
Pensar é um ato corporal que requer o amadurecimento do sujeito pensante que comporta uma certa lógica anatômica. A Instalação Didática permite que degustemos finamente as dramaturgias de corpos no ato de pensar. Como você faz o que faz? (15)
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Um corpo que pensa:
Aluno– Estou sofrendo para pensar…
Regina – Tente ficar um pouco mais permeável… o seu design me comunica, que você tem um evidente medo de perder o pensamento quando experimenta deixar o corpo menos denso…. experimente ficar um pouco menos denso e veja se você pensa melhor… um corpo que se formou denso com sua historia de vida compacta-se continuamente como uma maneira de ficar mais protegido. Deixe o olhar um pouco mais molhado e não duramente focado, com esse modo tão atento, procurando, procurando, procurando… isso… agora respire um pouco e você vai ver que você vai perceber melhor como os corpos comunicam sua experiência para os outros corpos… a experiência emana do próprio design de um corpo, tornando o que o nosso corpo vive e faz inteligível para o outro. Olhe para mim… o que eu estou fazendo? …
Aluno – Muito difícil…
Regina – … Veja… existe uma ação e um modo em curso…eu estou te dando tempo… olhe …eu estou aqui … parada… interessada… em você… sem te pressionar…. é isso o que eu estou fazendo… uma ação e seus modos.
Aluno – Mas tem uma intensidade muito grande em mim… é difícil segurar e me conectar ao mesmo tempo… não sei como conter…vaza de mim… vivo excitação demais na presença do outro…
Regina – Sim, vaza por um excesso de excitação…concordo… isso te impede de pensar… mas também você não tem desenvolvida a confiança de que possa formular as intensidades por aqui, pelo peito… isso criaria mais espaços para conter sua excitação e vivê-la…. é como se você não quisesse habitar a realidade do peito… quisesse ir direto para a cabeça. Vamos tentar abrir mais espaço no peito, criar um campo próprio atrás do osso externo… criar para você um nível um pouco mais relacional… repito, te falta ter uma vivência mais assumida de peito. A intensidade a que você está acostumado é a de barriga que é mais genérica… a de peito é mais relacional, mais dirigida… Tente criar mais espaço no peito para fazer uma captação do ambiente… e deixe a excitação preencher você por trás do osso externo… o pulmão encher, rotar lá dentro, o coração conversar com o pulmão, captar a ação do nervo vago no peito espalhando um clima pelo corpo.
Aluno – A sensação é bem melhor, fica tudo mais esfriado.
Regina – Sinal de que excitação começa a ser distribuída por mais áreas. Comece a captar atrás do seu osso externo sua sensação de esôfago, de traqueia, do movimento do pulmão que enche, esvazia, rota e veja como você vai ganhando acesso a toda uma paisagem de intensidades dentro do peito.
Aluno – Diminuiu a sensação nos olhos…
Regina – Agora você está sentindo… antes queria só enxergar através dos olhos… veja como é diferente essa sensação de peito… compare com a da barriga. Isso… você pode manter a pulsação no peito mantendo ele um pouquinho armado com a musculatura… note que seu peito se desativa com muita facilidade…
Aluno – Aqui fica melhor, mais vivo, meio agressivo… eu tenho um certo medo de entrar em contato com a minha agressividade… mas acho que precisa de agressividade para pegar o ambiente.
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Sair de si e pegar o ambiente é um ato agressivo
Regina- Eu tenho uma fantasia: pessoas grandes temem a própria agressividade. Veja como você pode encher mais de si o seu peito e ficar mais poderoso… essa sensação de leão, de rei, de homem grande.
Aluno faz a ação e ri.
Regina – Poder ser um homem grande, bonito, que brilha, que se expressa. E manter esse peito… a partir de dentro…
Aluno – É bem difícil… coisas acontecem e a gente começa a criar esse distanciamento…
Regina – Você acabou de falar como um corpo se forma… coisas acontecem e os corpos vão se moldando, se adaptando como conseguem… nós temos uma adaptabilidade muscular extraordinária… a gente vai se moldando naquelas condições e ,quando vê, o comportamento está organizado muscularmente e você já não se dá mais conta. Só percebe que está com o seu campo de possibilidades reduzido.
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Um peito: mais manso, menos manso.
Uma das características da Instalação Didática, esse modo que organizei para ensinar sobre os corpos e sua potência, é a gravação continua do acontecimento grupal e didático em curso naquele ambiente específico cuidadosamente montado. Keleman em seus workshops tinha sua sala de grupo montada segundo sua concepção de trabalho: ele sentado na frente, mais alto em um estrado, as pessoas em fileiras de cadeiras colocadas em semicírculo, um monitor de TV no alto da parede e um cinegrafista de lado com sua câmera parada sobre um tripé, ora focando Keleman ora focando o grupo. As pessoas ao interagirem, seja conversando ou protagonizando algo com ele podiam se ver no monitor ao mesmo tempo e operar com a ajuda dele o processo de corpar mudança. Gaiarsa, na mesma época, também utilizava a videogravação em uma outra modalidade: sala horizontal, não sei se com monitor e retrabalho sobre a imagem, e um cameraman na função de co-terapeuta. Certamente na época já existiam outros de que ouvi falar, mas cujo trabalho nunca conheci. Impossível não desejar gravar o que se via do comportamento e dos corpos a partir do surgimento das câmeras de vídeo no mercado dos anos 1980. Nessa mesma época também adquiri uma Panasonic enorme e pesada, como eram as primeiras câmeras amadoras. Mas está colocado aí um problema importantíssimo a ser considerado e configurado no processo de gravação: atitude e vínculo. O fotojornalismo sempre me impressionou. Sempre amei os fotógrafos-heróis da Magnum. Esse tipo de registro feito por um câmera imerso na cena do Laboratório, vivendo comigo e o grupo a situação em curso, tem o desafio e a emoção daqueles fotógrafos imersos e implicados naqueles ambientes captados por suas câmeras. Mas também, como mulher talvez, a intimidade do snapshot caseiro americano dos anos 40, tempo da disseminação das câmeras Kodak, muito me inspirou a validar a beleza e profundidade das cenas aparentemente insignificantes do cotidiano. O ensino desse modo de ver, captar e posturar-se no Laboratório desde o início foi praticado na liberdade de movimento dos alunos pela sala, da sustentação do ambiente, no estímulo ao manejo dos brinquedos tecnológicos, da participação ativa na captação de imagens. O ambiente de convívio que instalo nesse ambiente de ensino cria um sentimento de coletivo, um modo vincular diferente, uma relação com características conectivas diferentes, portanto resulta diferente de Keleman o que se faz e o que se vê. E aquilo que se capta como formas somáticas em suas dramaturgias é, portanto, diferente.
Há uma sala estúdio de 30m quadrados, onde se armam cadeiras leves desmontáveis em roda, mas que por serem leves podem ser dispostas de outro modo ou desarmadas. Há uma parede onde está o telão ao lado da TV, há uma parede com um quadro branco enorme em forma de ovo onde as cartografias e projeções de imagens também são feitas, redesenhadas, desconstruídas para serem compreendidas, enquanto diagramas do acontecimento ou da conversa são desenhados simultaneamente. Há outra parede que é forrada de cortiça onde anúncios de acontecimentos em andamento no Laboratório ou produções dos alunos são fixadas em papel. Imagens são gravadas todo o tempo e gravações de encontros anteriores daquele grupo são exibidas na TV continuamente como parte da cena, como camadas de memória.
Muitas vezes essas aparições mobilizam protagonizacões ou, por uma curiosa sincronicidade, surgem quando alguém está protagonizando a si na conversa formativa que desenvolvemos todo tempo. É nesse ambiente que se desenrola esta dramaturgia conceitual de que apresentamos um fragmento aqui. Nessa estratégia de singularização de si, o fragmento e a fragmentação desempenham um papel fundamental.
Aluno – Vejo no vídeo ali na TV uma rigidez na parte anterior, uma dificuldade de me fechar, uma pressão muito grande que vem de dentro.
Regina – Faça em você agora o que você está vendo … vamos fazer um recorte… imite como você faz lá, evidentemente de modo não intencional… imitar a si mesmo é o primeiro passo para aprender sobre si… imite como você está se vendo no vídeo agora.
Em seguida, você pode deitar no chão e fazer aquela mesma organização de corpo e atitude que está vendo em pé na tela. Olhar, imitar, fazer a mesma coisa em pé, deitado, de costas, de bruços. Esse é o pulo do gato para o cérebro captar muitos modos da mesma organização corporal-comportamental. Estamos ativando a relação de três camadas: excitação, músculos e sistema nervosa, ativando a continuidade do processo formativo de corpo em você.
Aluno – Parece uma procura o que vejo no vídeo… procurando alguma coisa… uma busca de um lugar no espaço… tentando me localizar… vejo uma rigidez grande… tenho bem a ideia do que se passava no momento. Essa dificuldade de se soltar…
Regina – Faça um pouco aquele movimento de encurtamento de si… no chão… fazendo e desfazendo essas ações… lentamente.
Aluno – Eu estava querendo soltar o corpo… soltar, abaixar, fazer um abdome… para criar sensação de mais flexibilidade. Mas parece que tem alguma coisa que impede aqui (aponta o diafragma torácico)…
Regina – Vá captando esse lugar que impede e veja que experiência é essa desse lugar.
Aluno faz ajustes na própria estrutura muscular imitando a imagem da Anatomia Emocional que está sendo projetada no telão da sala de grupo nesse momento do Seminário. Ele está desejando experimentar como sua estrutura faz aquela forma.
Aluno – Parece que se dou mais espaço na barriga não incomoda tanto.
Regina – Como você usa as suas costas?
Aluno – Aqui (frente) fica colapsado… se aperto embaixo parece que volta.
Regina – Deite no chão… como um somagrama vivo, deitado [15] … dobre os joelhos e coloque os pés no chão… como você compara a barriga com o peito?
Aluno – Nessa posição, a bolsa do abdome relaxa, mas na região do diafragma continua com uma pressão grande, o diafragma impede a comunicação da parte de baixo com a do meio. E tem uma pressão muito grande lá atrás… desconforto … aperto …
Regina (para o grupo) – Vocês estão enxergando? Cheguem mais perto para ele poder conversar com vocês.
Regina (voltando para o aluno deitado no chão): Sobre o grande e manso em você… reconheça a diferença, na sua experiência, entre firmar a bacia e largar a barriga.
Aluno – Eu não gosto de largar a bacia, parece que fica gostoso demais… daí não chega energia na cabeça… dá vontade de me alienar. Mas quando eu fecho a bacia, muda.
Regina – Feche as mãos ao mesmo tempo.
Aluno – Aí sobe o peito e a garganta abre.
Regina – Veja se você consegue organizar nessa posição uma forma mais afirmativa de si… um corpo modela uma forma aplicando micromovimentos sobre si mesmo, já sabe… vá deixando a forma deslizar pelo tecido conjuntivo, por essa viscosidade dos tecidos… compreende?… entre uma forma afirmativa e uma forma mansa…os pés… o que acontece?… os pés ficam soltos, inúteis, quando você faz a forma mansa… veja como pode começar uma afirmação a partir dos pés… notou como mãos esboçam um fechar?… dê mais um grau de firmeza às mãos, mais um grau de firmeza aos pés. O que acontece com a garganta?
Aluno – Abre a garganta, cresce tudo por dentro.
Regina – Diga essa frase a partir dessa configuração de si que emergiu: “Aqui eu me afirmo”.
Aluno – Aqui eu me afirmo
Regina – É bom?
Aluno – Opa.
Regina – Repete… pisa nos pés e vai para a forma… dê voz… vamos colar linguagem na ação…[16]
Aluno – Aqui eu me afirmo… aqui eu me afirmo.
Regina – Tem um movimento de bacia… de recolher a barriga. Faça esse movimento de captar o tecido conjuntivo de outra maneira.
Aluno – Eu tenho feito muito isso naturalmente.
Regina – Aqui eu me afirmo, aqui eu me afirmo. Aqui eu amanso. Solta a bacia e fica manso. Um homem que não ameaça. Um homem grande que não ameaça. Faz sentido para você se perceber grande e suave? Vá se experimentando sair do excesso de suavidade, fazer firmeza e voltar…
Regina – Importante você saber que quando solta a barriga, você esvazia o peito… a presença [17] perde a integridade.. a integridade da forma. Presença é forma, e não apenas pensamento. Uma forma pensante. Agora você agora vai buscar a relação bacia e impulso dos pés para crescer mais o seu tamanho… veja como faz a conexão entre a bacia, peito, cabeça, passando pela garganta, pelo diafragma torácico e períneo. É o conceito visual do homem sanfona de Keleman na Anatomia Emocional. Faça um pouco mais e um pouco menos dessa forma que você acaba de organizar agora, para perceber como você regula a sua intensidade… e aprender com o processo somático como fazer para sustentar uma intensidade maior de si.
Como pode compor um olhar? Você tem um olhar muito expressivo, um olhar bastante integrado na sua forma. Como você sente que fica seu olhar quando você cria mais afirmação, mais assertividade? Pensar é uma forma de afirmar sua singularidade.
Aluno – Esse modo do olhar modifica bastante a visão… a visão periférica expande, dá a sensação melhor de amplidão… estou enxergando mais.
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Aprofundando a problematização da forma somática
Regina: Agora, se você deitar, talvez perceba os pulsos de musculaturas mais profundas. Deite novamente. Aqui podemos ver o 4º passo da Prática de Corpar de Keleman acontecendo [18]. Viemos até agora problematizando o que é o amansamento. O que é (passo 1) e como é (passo 2)… o amansamento em sua anatomia e sentido de si. Depois, repetimos a forma com variações de amplitude (passo 3): mais passivo, mais agressivo, mais manso, mais assertivo. Agora, vamos esperar um pouco e ver se você consegue captar na musculatura mais profunda pequenos impulsos e emergências (passo 4). Descanse e deixe operar a profundidade. A profundidade está contraída?
Aluno – Bastante.
Regina – Então você vai contrair mais e em seguida vai gradualmente diminuir a contração da profundidade. Diminua outro grau de contração e deixe ( passo 3). Descanse. Estique as pernas. Agora você só vai esperar ( passo 4)…. O que vai acontecendo? Você estimulou o padrão de funcionamento, intensificando (passo 3). Agora a forma do padrão está respondendo reflexamente, movendo-se o em direção tônica oposta, expandindo. Expansão e contração são as ações básicas de um corpo.
Aluno – É uma briga… está faiscando a coluna por dentro, lá no fundo….
Regina – Exatamente… firme os pés no chão… agora, você vai receber essa excitação subindo pela coluna… perceba como ela sobe pela musculatura profunda…. ela está subindo em direção à base da cabeça.
Aluno – Está confortável assim…
Regina – Veja se pode deixar essa excitação entrar mais dentro do peito… isso … agora sim… use os pés e use a bacia. Isso…
Aluno – Parece que tem alguém sentado no meu peito.
Regina –Quem você está sentado em cima do seu peito?
Aluno – Eu mesmo.
Regina – Quem é esse você? Como é esse sentado? Tem algo de acomodado, com medo de mudança, uma acomodação antiga… Imaginei…
Aluno – Estou tendo a sensação de separação entre o lado esquerdo e o direito da coluna… uma diferença nítida de tônus… o lado direito está mais tenso, estou mais apoiado sobre o lado direito do que do esquerdo.
Regina – Talvez você, agora que você está abordando esse quem sentado no peito esteja experimentando um impulso de se virar… estou vendo o esboço da torsão. O que acontece se você fizer um movimento e desviar do excesso de contato comigo? (Regina ajuda a torção)
Aluno – É bom… é como fugir.
Regina – E se você virar só o rosto, apenas mudar a direção do olhar? Uma pequena diferenciação …veja se isso cria mais privacidade para você.
Aluno – Melhora bastante.
Regina – Não se exigir olhar de frente, colocar o rosto tão de frente… você pode fazer um pequeno movimento para o lado… veja se isso te descomprime o peito. Não é necessário estar tão exposto.
Aluno – Melhor.
Regina – Isso. Veja agora o que aconteceu com os dois lados, com o tônus dos dois lados.
Aluno – Equilibrou mais. Estou sentindo apoio na lombar, o quadril está mais firme.
Regina – Veja como esse movimento de firmar quadril te dá um centro que é seu. Você pode experimentar trazer essa sensação de privacidade também para o quadril. Pensar requer a capacidade e manter um espaço interno de privacidade.
Aluno – Aqui dá uma sensação mais de enfrentamento, aqui embaixo. Parece que dá força. Dá força.
Regina – Isso é bom para você?
Aluno – Ótimo.
Regina – Praticar essa forma…repetir… primeiro com você… depois ver os efeitos que isso tem. Mas praticar. Esse é um ponto do método formativo: alimentar as conexões córtex- músculos. Aqui há também um outro ponto que se pode observar: todas as ações dos animais, desde os mais primitivos, são genéricas – virar, contrair, afirmar, levantar, descer, fechar, torcer… mas nós, humanos, constituímos um quem que é o agente das ações… um sujeito dos verbos… no presente… com uma historia… que acontece no mundo… isso muda tudo.
Esse aluno acabou de fazer uma performance de si no presente, produzir experiência. Ao utilizarmos a linguagem formativa [19], descobrimos que existe uma continuidade entre o dizer-se e o filosofar, entre o corpar e a linguagem, como essas atividades não são separadas e estão ao acesso das pessoas. Essa é uma língua do homem comum. A filosofia americana nasceu para o homem comum e é para ser usada, usada para viver. Viver é estar em conexão se fazendo ao mesmo tempo. Isso vai ficando muito evidente no praticar-se… É disso que estamos falando.
Conclusões finais:
Como o que fazemos o que fazemos em todas a situações da vida é visível como o modo particular de cada um funcionar ou, em outras palavras, o padrão é a própria estrutura constituída por um certo jogo de pressões profundas preservado na forma particular das bolsas, tubos, diafragmas, envolta por um certo tipo de musculatura, por um certo tônus local e geral. Por uma certa anatomia própria. A forma, enquanto se mantiver agregada desse modo, mantém um padrão de bombeamento e de funcionamento emocional, de conexão com o mundo e consigo, gerando, sustentando um quem que age assim, que fantasia assim, que se narra assim e que produz seja o que for assim. O quem é o agente, quem, desse conjunto de ações que mantém um lugar em que a vivência e a produção de vida se dá. Ao agirmos sobre essa configuração, atualizando-a um pouco mais, estamos abrindo passagem para as forças do presente, para que possam a nutrir sua continuidade. Isso é o que podemos chamar aumento de potência. A Instalação Didática e suas práticas se constituem em uma epistemologia da nossas ações.
O pensamento, a linguagem, os modos de ver, compreender, agir e ensinar na cena dos Seminários de Biodiversidade Subjetiva NT [20] são uma resultante de uma livre assimilação e uso do pensamento formativo de Stanley Keleman bem como de uma ação viva e crítica sobre este, dentro de um campo em que se compreende a vida das pessoas como parte de um processo histórico-mundial, de poderes e valores, local e geral, abrangente, em continua produção.
A produção e a captação do acontecimento-seminário, a experiência de registrar, cartografar e editar o drama que se desenrola, ali, na produção dos corpos, dos ambientes e do conhecimento é essa tarefa que mobiliza a invenção contínua de tecnologias, ações e práticas dentro do dispositivo do Laboratório que acabamos de assistir com a imaginação.
Essa é uma estratégia útil para qualquer atividade em que se deseje conferir os corpos existindo em sua realidade de formar a si mesmos continuamente, não importa onde.
E exercer o supremo privilégio de interferir no destino, ajudando-se ou ajudando alguém a escapar da sua roda de repetições e produzir diferença.
Referências
- Na instalação didática – https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2016/07/na-instalacao-didatica/
- http://www.centerpress.com/
- Keleman, S., Realidade Somática, Ed. Summus
- Keleman, S., Corporificando a Experiencia, Ed. Summus
- Keleman, S., Amor e Vínculos, Ed. Summus
- Guattari, F, As Três Ecologias, Ed. Papirus
- Rolnik, S. e Guattari, F., Micropolíticas: Cartografias do Desejo, Ed. Vozes
- Laboratório do Processo Formativo – www.laboratoriodoprocessoformativo.com
- Vídeo: https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2014/03/embodiment-en-buenos-aires/
- https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2013/03/cabendo-em-si/
- http://www.centerpress.com/
- Deleuze, G e Guattari, F, Kafka, por uma literatura menor, Imago Editora, 1977
- https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2013/03/mar-de-comportamentos-silenciar/
- Guattari, F., Insconsciente maquinico, Ed. Papirus
- 15.Keleman, S., Corporificando a Experiência, Ed. Summus
- https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2012/09/mar-de-palavras/
- https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2012/03/presenca/
- Keleman, S., Corporificando a Experiencia, Ed. Summus
- https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2012/09/mar-de-palavras-3/
- https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2013/10/seminario-de-biodiversidade-subjetiva-uma-dramaturgia-dos-conceitos-formativos/