Regina Favre
para revista IDE da Sociedade Brasileira de Psicanálise no número 61 dedicado ao tema do Corpo
1. A trilha
Os saberes e as práticas do corpo subjetivo, tais como os concebemos hoje, estão enraizados na Europa do século 19, como um subproduto da sociedade industrial. O modo de produção que remodelou completamente as tradições culturais e artísticas, as concepções filosóficas e científicas, a linguagem, os valores, a aparência das cidades, ruas, casas, seus interiores, exigiu um grande esforço dos corpos para que produzissem e assimilassem essas realidades. Em meio a transformações de poderes, sentidos, tecnologias, velocidades, modos de produção e distribuição do dinheiro, noções e práticas que diziam respeito à autorregulação e autonomia dos corpos, estavam prontas para aparecer e urgiam ser formuladas como um antídoto dos primeiros sinais do estresse da cultura e das novas doenças emocionais. Não apenas técnicas, mas métodos refletem as diferentes perspectivas do corpo necessitando regular-se.
Rompendo os limites dos ambientes acadêmicos e médicos, pesquisas e vivências conduzidas por indivíduos ou pequenos grupos independentes, resistentes ao modelo corporal rígido imposto pelo poder disciplinar em seu apogeu da 1ª Guerra, foram fundamentais para o desenvolvimento de práticas e posteriores teorias corporais que moldaram essa nova cultura, entre os anos 1920 e o final da 2ª Guerra.
Para esses jovens precursores, urgiu permeabilizar seus corpos num exercício de assimilação do acontecimento em curso, gerando adaptações através de uma pedagogia corporal. Esse deve ser considerado o marco zero no modo de subjetivação do corpo da futura cultura que viria a afetar todos nós. Escapando da destruição que se avizinhava e atraídos pela promessa da democracia na América, esses pioneiros europeus migraram para um ambiente onde essa cultura encontraria acolhimento na tradição do pragmatismo e nos valores do corpo e da vida natural celebrados pela literatura, pela disciplina religiosa e, principalmente, pela imensa prosperidade do pós-guerra.
É emblemática a foto de John Dewey, o filósofo do Pragmatismo, nos anos 1940, tendo sua cabeça manipulada por Matthias Alexander, o criador do Método Alexander de organização postural.
Floresceu, então, nos Estados Unidos dos anos 1950, associada às filosofias sociais da época, uma cultura que continua se expandindo, mas sobre a qual se deve fazer uma continua operação crítica para que se possa utilizá-la. Naquele momento, também a cultura americana apontava para sua expansão planetária.
A economia do pós-guerra e a modelagem serial dos corpos se fizeram juntas. “Os Estados Unidos descobrem que para transformar a máquina de guerra em uma economia viável e desviar da Grande Depressão, que ainda pairava sinistramente sobre a memória das pessoas, o capitalismo do século 20 deveria se basear num movimento contínuo de produção e consumo, dependente de produzir e vender produtos, bens, serviços e experiências, não-essenciais e obsolescíveis que para serem adquiridos, a poupança dos consumidores jamais seria suficiente, portanto, inventa-se, também, o crédito fácil. Consumir e não poupar, permitir-se e não sacrificar-se, tornou-se o estilo dominante”.
Instalou-se uma pedagogia midiática em que cabe ao rádio, às revistas, aos jornais e à televisão, o ensino do manejo de vidas e finanças. Uma nova configuração de si, “científica”, moderna e saudável, vinha a galope.
Nicolau Scevcenko descreve por quais caminhos essa força chega ao Brasil e passa a modelar também nossos corpos e vidas. “Com o colapso da indústria européia de cinema, os Estados Unidos herdaram tudo, construindo um monopólio de produção, distribuição e exibição mundial. E com o surgimento do cinema falado e os aumentos dos custos de produção, os pequenos estúdios foram à bancarrota e, apenas, as grandes corporações de Hollywood sobreviveram. O sistema de estúdios otimizou e reduziu os custos de produção e na sua contrapartida promocional, criou o mito das estrelas. Hollywood espalhou, a partir daí, como um dogma, o padrão de beleza que se tornou a alavanca principal de novos hábitos de consumo e estilos de vida, identificados com o american way of life, maximizando as técnicas revolucionárias de comunicação visual: close-ups, efeitos emocionais de ritmo, som, música, expressão facial e corporal, o glamour da juventude, as coreografias atléticas, as maquiagens, os penteados, o guarda-roupa, os cenários e, mais do que tudo, o poder esmagador do sex-appeal, tudo isso aparecendo numa tela colossal, que irradiava seu brilho prateado e hipnótico na escuridão do cinema.” (Sevcenko, 1998, p. 513).
Mas essa versão glamurosa internacional da modelagem cinematográfica dos anos 1950 cobiçada por todos, antes mesmo dos anos 1960, já começava a ser superada por outro produto que se espalhava: o novo perfil subjetivo do rebelde que não deseja aquela vida de seus pais, modelada pelos valores e comportamentos protestantes da sociedade de consumo. Urgia desconstruir o corpo rígido do herói americano, quase nazista, tão bem descrito por Philip Roth em Complô contra a América (2005). A essa altura, W.Reich já se encontrava no Maine influindo sobre A.Lowen e J.Pierrakos que serão os patriarcas das psicoterapias corporais no Novo Mundo.
Da arte e da dança moderna, do modo de representar do Actor’s Studio, da literatura beat para a cultura do rock, para os movimentos feminista, hippie e psicodélico, para rebeliões estudantis de 1968, para a contracultura, para a cultura alternativa, foi um pulo. Entre os jovens, outro modo de conceber o corpo e novas práticas de si passam a ser desenhadas. E, nessa onda, os humanistas imigrados para a América desempenham importante papel na desconstrução dos usos de si, desvalorizados por essa geração e na composição de novos corpos. Turmas e amigos se agregam, sobretudo em Nova York, o melting pot, no cultivo desses modos de se relacionar, trabalhar, comer, viver, fazer sexo e, mais adiante, conceber família, gênero, dinheiro, educação, raça, cultura, política e poder.
Movida pela mesma fé na mudança, na aventura e no desafio de si, essa cultura corporal remodelada foi exportada para a Europa nas rotas do nomadismo da juventude americana, de encontro às idéias libertárias de W. Reich, que já produziam frutos. Nessa hibridação, modos coletivos de viver e fazer, expressões culturais e artísticas, comunidades urbanas e rurais, personal-development centers, psicoterapias, práticas corporais, projetos sociais e ativismo político proliferaram. Ideias, estratégias de vida e comportamentos americanos passaram por uma multiplicação espantosa, deram essa volta pela Europa e, nos mid 70s , chegaram até nós. Por toda parte, um ideal de um mundo, dito alternativo, que influenciaria de fora para dentro o “sistema”, animava os corpos.
No Brasil, desde os anos 1960, o Tropicalismo, como movimento artístico, literário, musical e político, expressava a urgência de espanar o pó das nossas tradições agrárias e conservadoras “caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento”, incorporar nosso recente desenvolvimento industrial, reformatar os corpos e absorver a realidade mundial que “explode nas bancas de revistas” (Veloso, Alegria Alegria, 1967). Levantavou-se aqui também uma força desconstrutora e proliferante. Com a atmosfera letal das ditaduras latino-americanas, muitos brasileiros tornaram-se política ou existencialmente exilados. A afinidade com nossa necessidade, nos permeabilizou e atraiu para esses movimentos que se expandiam, sobretudo, nessa London London (Veloso, London, London, 1971) solo fértil para novos padrões de comportamento, onde a nova cultura do corpo vicejava.
Em 1975, pessoas marcadas por essa experiência, ao voltar para o Brasil, participaram da fundação do primeiro curso de psicoterapia corporal Gestalt Reich, no Insitituto Sedes Sapientiae. Já no início dos anos 1980, em busca de formação profissional, alguns grupos podiam ser vistos no Brasil trazendo terapeutas internacionais para ministrar workshops. E, até o fim da década, em sintonia com o capitalismo de mercado que já se estabelecera, um número crescente de pessoas ligadas a essas escolas autorais, americanas e inglesas, já formatadas como empresas de formação profissional neo-reichiana, se apresentavam instituídas por aqui.
Essas ideias e práticas fizeram sentido no Brasil de um modo peculiar e em condições muito diferentes das que constituíram seu solo original, num primeiro momento, se juntando às forças que, culturalmente, combatiam os efeitos destrutivos da Ditadura nas vidas e corpos das pessoas. É bem conhecido como um certo tipo de psicanálise engajada argentina, trazida por Emílio Rodrigué e, a seguir, pelos fundadores do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, convidados por Regina Chneiderman, desempenhou um papel importante, acolhendo em seus divãs a recém-nascida cultura reichiana. Assim, compreende-se, que, dada essa afinidade, o reichismo que inicialmente vingou no Brasil foi o da “Análise do Caráter” (Reich, 1933), em suas variações, considerado nos anos 1930, um avanço político e metodológico. Embora J. A. Gaiarsa, inimigo declarado da psicanálise e de grande acesso à mídia, tenha tido papel importantíssimo na criação de um campo em que toda uma geração foi introduzida a uma cultura reichiana despsicanalizada, o primeiro grande esforço assimilativo no campo psicoterapêutico corporal brasileiro, dos anos 1970, foi a busca de uma estruturação teórica de respeito face a cultura psi pré-existente. Tentava-se assimilar uma base psicanalítica para a prática neo-reichiana, buscando encaixar noções tais como id, ego, superego, inconsciente e transferência. Entretanto, o corpo, em sua potência e maravilha, permanecia intocado teoricamente.
No mesmo início dos anos 1980, a visão da nova subjetividade do capitalismo contemporâneo, trazida da França por Suely Rolnik e Félix Guattari, contaminava muita gente com um sentimento de uma nova vida se fazendo. Os saberes não mais encerrados na Academia estavam se tornando pop. Portanto, mesmo que não se mergulhasse na leitura do Anti-Édipo (Deleuze & Guattari, 1972), respirava-se uma nova realidade emergindo, uma nova alegria, novos ares, junto com o fim da Ditadura e o nascimento do Partido dos Trabalhadores (PT). O novo capitalismo, com o fim da Guerra Fria, quebrava fronteiras nacionais e começava a operar como Capitalismo Mundial Integrado (CMI) na formulação de Guattari. Revelou-se, imediatamente, que isso exigia novas teorias e práticas do corpo. A narrativa familiar como pano de fundo das nossas vidas, evidenciava-se como uma pequena parte da narrativa histórico-mundial e a história social ganhava seu papel na hermenêutica da Subjetividade.
Uma certa visão de corpo subjetivo no capitalismo industrial e seus efeitos, tinha sido descrita por Reich, que foi absolutamente inovador ao relacionar com a repressão sexual a adaptação de indivíduos ao autoritarismo da vida fabril, escolar, religiosa e familiar. O reinvestimento da libido na formação caracterológica com o comprometimento do reflexo orgástico – a neurose, era, para ele, a força motriz da sociedade industrial em que se produzia um forma corporal rígida, reprodutora do padrão de funcionamento autoritário aliado do Estado fascista. A dissolução da couraça muscular do caráter, deveria ser o foco das atenções, política e clínica, àquela altura da história. Mas era evidente, que deveria haver outra resposta bem diferente, já pressionando por formulação e invenção, que dissesse respeito ao modos de usar o patrimônio biológico e modelar vidas nessa nova realidade mundial que se anunciava (Guattari & Rolnik, 1986).
Na nova forma tomada pelo capitalismo (CMI), a coexistência com os modelos familiares certamente prosseguia, mas a estruturação do sujeito passava a ser regida por forças mais amplas. Com a nova conjunção de interesses de mercado e de grandes corporações, agora fundidas internacionalmente, não mais a “repressão”, mas a “falta” passa a ser central, para a geração do lucro. Tornava-se necessário, então, sensibilizar-se para a nova estratégia, não mais autoritária e repressiva, mas sedutora e convidativa do capitalismo de mercado. Nesse momento, tratava-se de lidar com um astucioso combinado da estimulação da falta perpétua com a oferta simultânea da ilusão de completude. As imagens veiculadas pela mídia passaram a desempenhar o papel principal nessa nova operação.
Mais adiante no final dos anos 1990, a ideia de Multidão (Negri & Hardt, 2004), até hoje invísivel para um grande número de pessoas, foi trazida pelos autonomistas italianos que aportaram no Brasil, descortinando a nova realidade do mundo já inteiramente globalizado. Compreender-se como corpos na multidão dava sentido para experiência da vida, agora, molecularizada, fragmentada, em luta por auto-organização e conectividade, organizando-se em modos minoritários de existência e trabalho, cada vez mais desvinculados das hierarquias, do emprego e das famílias – que, é o grande desafio da década corrente.
Com essa compreensão, tornou-se possível não se culpabilizar nem se ver fracassando, mas, apenas, entender a urgência de uma nova estratégia social e corporal para que fosse efetuada a luta que se apresentava. A velocidade imprimida pelo capitalismo evidenciava os corpos e seus mundos formando-se e reformando-se. Como em um filme acelerado, enxergavam-se os padrões de subjetivação modelados pela mão do mercado, dentro de um interjogo de poderes, valores e interesses comerciais. Essa era uma enorme revelação, mas prosseguia a necessidade de um conceito de corpo enquanto processo biológico autopoiético, tal como pedia a proposta de Guattari, que viesse acompanhado de uma prática intimamente conectada com o processo de produção de corpo nesse novo quadro.
2. A busca
Neste momento , faz-se necessário mudar o eixo da narrativa. É à primeira pessoa que pertence a continuidade deste artigo.
Com o recém-publicado “Emotional Anatomy” (Keleman, 1987), precisamente em 1987, redescubro seu autor Stanley Keleman que me escapara na década anterior e me aproximo de seu conceito de Processo Formativo. Finalmente, eu podia acessar um conceito visual e encarnável do corpo como um processo que se estendia desde os primórdios da biosfera, continuamente produtor e produzido por processos físicos e sociais, canalizando-se e secretando-se a si mesmo, gerando, dando forma e sustentando corpos e ambientes como uma resposta a necessidade inata dos corpos, de conexão e forma. O discurso de Keleman, um pensador contemplativo ocidental de tradição pragmatista e darwinista, me arrebatou.
Stanley Keleman é um autêntico fruto da cultura do corpo novaiorquina dos anos 1950 e portador da marca do Instituto Esalen, comunidade aberta no paraíso da Costa Oeste americana, onde viveu e trabalhou, na década que foi o auge da produção desse amálgama de ciência, espiritualidade, ecologia, Bodywork e Gestalt, conhecido como Movimento do Potencial Humano. Nos anos seguintes, mergulhado nas raízes heiddegerianas dessas ideias na Europa, formatou uma síntese que leva o nome de Processo Formativo. Em seu regresso, nos anos 1970, instalou seu Center for Energetic Studies em Berkeley (CA), onde prossegue, sempre independente, produzindo pesquisa, terapia, ensino e publicação.
Na largueza da expressão de seu pensamento, identifiquei algo comparável à visão ética-estética-política-clínica de Deleuze & Guattari que vinha contaminando o Brasil.
A atração pelo Processo Formativo não apenas se deu por conta da minha insatistação com a aplicabilidade das cartografias reichianas, para essa nova problematização da subjetividade corporificada que se apresentava, mas, sobretudo, pela impossibilidade que encontrei de produzir uma operatividade corporal a partir de conceitos agenciados por Guattari, sobretudo o de Autopoiese. Esse conceito foi criado por Francisco Varela e Humberto Maturana, na década de 1970, para designar a propriedade de autoconstrução do vivo. Esse descompasso me manteve atenta ao que pudesse surgir no horizonte americano. Meu foco, então, sobre Keleman foi mais do que certeiro.
Logo comecei a me corresponder com ele, a cuidar da tradução de seus livros, e, finalmente, em 1992, a freqüentar seus workshops em Berkeley (CA). Esse contato intensivo durou 15 anos, tempo suficiente, sempre honrando as forças Tropicalistas, para devorá-lo e assimilá-lo. Sem dúvida, também, a experiência como analisanda em divãs acolhedores, ao longo de todos esses anos, veio me desafiando e permitindo organizar um funcionamento criativo da mente, o que muito facilitou, e facilita, elaborar e trilhar caminhos difíceis com autonomia.
3. Keleman
O corpo como um processo formativo foi um achado clínico e filosófico fundante. Keleman, com sua linguagem biológica contemplativa, me arrastava para o caldeirão da vida se fazendo. Dava corpo ao espírito de imanência presente no pensamento de W. James e central na proposta micropolítica de Guattari, que, com seu claro tom de manifesto, formatara, definitivamente, minha responsabilidade com a produção do mundo. Ao descrever, a sinfonia das nossas vidas se formando como sistemas, dando continuidade ao modelo do unicelular, dentro dessa manta viva chamada biosfera, Keleman mostrava, com palavras e imagens, como cada corpo em particular faz, também, o mesmo que a biosfera: estende-se, recolhe-se, forma sub-organizações.
Eu reconhecia esse olhar, lisérgico e búdico, já encontrado, anteriormente, na contracultura, com Aldous Huxley, Timothy Leary, Fritjof Capra e toda uma geração de pioneiros americanos que apontavam a prática meditativa como instrumento para a captação da realidade se fazendo.
O expandir e contrair da superfícies corporais dessa bomba pulsátil é o modo pelo qual, afirmava Keleman, cultivamos conexões com o mundo e formamos conexões internas de subsistemas do self. Somos móteis e pulsáteis desde o unicelular e a Evolução, diz ele, nos dotou de um sistema cortical voluntário que mobiliza o pulso vivo do corpo. Mais conexões sinápticas podem se fazer, assim, dando prosseguimento ao trabalho auto-produtivo do vivo. Os corpos são vistos como learning-systems, portanto.
Para Keleman, essa ação de continuidade, natural da Evolução, deve ser feita intencionalmente por meio Prática de Corpar. Nela “o esforço voluntário cortical-muscular estimula o crescimento de axônios e vai formar uma estrutura conectiva, as sinapses, conectando a parede do corpo ao córtex.” (Keleman, 2007). Esse é o método preciso para organização da experiência individual e produção de diferença nas formas somáticas, desenvolvido por Keleman como a contrapartida pragmática de sua filosofia. Nessa prescrição, ressoando com a meditação cultivada pelos físicos quânticos, aparece uma prática. A Prática de Corpar, como descreve Keleman no artigo The Metodology and Practice of Formative Psychology (2007), é uma forma de meditação ativa ocidental, que se aplica sobre histórias, vidas, personagens, comportamentos e sentimentos, extraindo delas mais vida com as forças e propriedades da Evolução.
A cooperação íntima entre cérebro e músculos mostrava-se, portanto, como uma chave de valor inestimável que poderia abrir portas para a compreensão e o manejo da produção dos corpos dentro da nova estratégia do mercado, esse devorador da diferença. A descrição fina das ações que compõem a prática intencional do Processo Formativo do corpo, era puro ouro para ser aplicado micropoliticamente na realidade dos anos 2000.
Com o exercício do gerenciamento do sistema voluntário sobre o involuntário das respostas somáticas, cultivam-se e modelam-se adaptações finas sobre o corpo do presente, em suas formas de maturação, de identificações sociais, de reflexos de defesa às intensidades intoleráveis, de emoções, de modos vinculares, de secreção de mais corpo.
Em sua obra A Psicologia, de 1892, W. James forneceu uma afirmação que tornou-se central na cartografia kelemanina: os comportamentos antecedem a experiência. E o Darwinismo Neural, de 1992, do conhecido neurocientista G. Edelman, se apresentou também como aliado quando Keleman aplicou o conceito de ‘reentrada neural’ na qual o cérebro mapeia as ações do corpo e edita mapas neurais. Os mapas, na apropriação do comportamento do corpo, conversariam entre si e compartilhariam informação estabilizando novas ações musculares. Usando o processo neural natural, ativado pela Prática do Corpar, recombinam-se e estabilizam-se alterações dos comportamentos na continuidade desse corpo que se autoproduz. Assim, morfogênese e a metamorfose, para Keleman não são limitadas a uma intuição, mas consistem em uma prática inerente à vida que deve ser aprendida e praticada.
4. Intercessores
Esse conhecimento maravilhoso do corpo, embora apontando para o grande oceano comum da vida, não poderia escapar do conflito inerente à tradição individualística americana em que ideias, práticas e narrativas, mesmo as mais libertadoras, são tragadas para dentro do enquadre privado, em que ao corpo cabe apenas ‘tornar-se pessoa’.
Dentro dessa perspectiva que se configurou como mercadológica, escolas, na maior parte pertencentes a autores, se multiplicaram, incluido formações, filiações e direitos autorais, rigorososamente controlados e cobrados. Reafirmava-se, então, a necessidade de uma operação crítica sobre essa política cultural do desenvolvimento pessoal, para que se pudesse usá-la coletivamente em sua riqueza e potencial.
Nas famosas conferências, denominadas The culture of the self, em 1983, pouco antes de sua morte, M. Foucault, coloca o corpo numa imensa rede de saberes e práticas, desferindo um golpe elegante sobre esse olhar individualizante americano, californiano, em plena UCBerkeley. A operação genealógica que aqui também estamos empreendendo, espero que tenha potência para abrir uma brecha por onde poderão passar forças que venham alimentar micropolíticas de multidão. A essa altura, porém, para prosseguir com a tarefa de devolver o corpo ao coletivo, torna-se necessário invocar Antonio Negri, o militante da esquerda italiana radical, para aprender com ele algumas distinções importantes:
- pessoa é uma ideia moderna e multidão, uma ideia contemporânea;
- multidão é um todo de diferenças;
- o pensamento da modernidade abstrai a multiplicidade e transforma a multidão em uma massa homogênea a que chama povo;
- as políticas de homogeneização e hierarquia, são inerentes à modernidade;
- a multidão é sempre produtiva e sempre em movimento, produzindo-se, ao mesmo tempo que produz sociedade em produção;
- a multidão aponta para um modo vincular de cooperação geral, que sustenta a continuidade da produção da realidade.
- nada disso se faz sem luta. (Negri, 2004).
Entender, sentir e fazer essas diferenciações é fundamental. Mas, muita atenção, o terrorismo exercido pelo mercado se dá, podemos perceber com a ajuda de Negri, não mais sobre os corpos isolados, mas pelo boicote da cooperação e, sobretudo, pela exploração das redes que compõem o todo, atacando e moldando a conectividade entre os corpos. Vemos, então, como esse toque muda totalmente a direção por onde prosseguir na elaboração do corpo, clínicas, pedagogias e micropolíticas que protejam sua continuidade formativa.
Para elaborar uma estratégia corporalista útil para o contemporâneo, precisamos aprender a acessar nos corpos, com a ajuda das cartografias do Processo Formativo, os comportamentos de susto e imitação, bem como as propriedades de agregação, conectividade e amadurecimento (Favre, 2011).
Imaginemos susto e imitação se espalhando globalmente, de uma maneira nunca vista, como um vírus, por meio das redes de comunicação, sobretudo, por imagens, sejam informação ou modelos de comportamento, que agora nos envolvem a todos.
Imaginemos, também, que o corpo, que agora existe como multidão, continua sendo o mesmo corpo da Evolução que, para prosseguir canalizando a vida, agora funcionando no modo-multidão, exige manter-se como sempre, agregado molecularmente nas formas que o compõem; mas precisa, também, aprender a modelar-se em comportamentos que o façam parte funcional, produzida e produtora, do acontecimento coletivo. Imaginemos, também, esses corpos crescendo, em seu destino genético, da concepção à morte, desencadeando formas conectivas que vão da fusão à autonomia, da dependência à cooperação.
Vemos nessa cartografia rápida, que, para viver a realidade da multidão no contemporâneo, temos que aprender a dissolver, em primeiro lugar, as formas do susto produzidas pelo mercado da informação. Esse é o ataque do capitalismo às conexões entre o corpos que A. Negri nos faz sentir na pele. Em outras palavras, o reflexo do susto separa os corpos do ambiente. A desagregação promovida pelo reflexo do susto desencadeia em nós o reflexo da imitação. É o animal congelando diante do predador e mimetizando com o ambiente.
O que o mercado oferece para nossa imitação funciona como bordas subjetivas que aparentemente contém a desagregação em curso: modos de relacionar, morar, vestir, pensar, imaginar, amar, desejar, funcionar, produzir, gerar histórias de vida, opiniões, posições políticas que, evidentemente, são uma gambiarra.
Manejar esse dois comportamentos reflexos, é da maior importância. Precisamos aprender, também, a reconhecer e propiciar o amadurecimento vincular dos corpos, para que ocorra conexão efetiva com as redes, locais ou gerais. Os corpos trazem neles a potência de amadurecer da fusão à cooperação. Mas corpos imaturos fundem, dependem, se submetem, dominam, seduzem mas não cooperam.
Praticar a cooperação na producão de mundo deixa de ser uma regra moral e passa a ser o efeito de cuidado com os tempos formativos e os ambientes confiáveis, no formar e no amadurecer dos corpos. Só assim, geram-se as diferenciações potentes que nos conectam funcionalmente aos ambientes da rede global, sejam próximos ou distantes.
5. Na Instalação Didática
Depois de múltiplas experiências, de extensão e retroalimentação de um trabalho clínico e pedagógico com os corpos, passei a dar forma ao Laboratório do Processo Formativo, que começou a existir a partir do ano 2000, em São Paulo, um ambiente tecnológico e relacional, de convívio, estudo e registro simultâneo dos corpos em seu processo contínuo de autoprodução, captados em seu ato de existir e se relacionar com a própria experiência de estudo e manejo de si no ambiente. Nesse espaço, produzo e dirijo uma pesquisa formativa onde os grupos de alunos que se sucedem são sujeitos, agentes e aprendizes. Nesse estudo de conceitos e práticas de si, os corpos são registrados em ato e na simultaneidade, em vídeos, fotos, lousas, cadernos, desenhos, com compartilhamento imediato, em grupos fechados na internet. A invenção de uma estratégia específica e singular de produção e uso de imagens foi o primeiro passo para um trabalho sobre esse corpo contemporâneo em que o poder se expressa, antes de mais nada, por meio das midias de imagem.
Todos esses rebatimentos, que continuam se multiplicando, permitem que nesse ambiente de jogo, emerja uma naturalidade nos corpos, que é, justamente, o material de estudo a ser captado, recolhido, estudado, praticado e, por fim, apropriado como conhecimento, ao mesmo tempo, particular e coletivo. Atualmente, chamo de Instalação Didática esse processo de trabalho com os corpos em seu ato de se produzir.
Porém, tornar evidente a realidade somática em contínua produção de si, ao longo de suas vicissitudes formativas, é uma tarefa que requer um entrelaçamento delicado de linguagens e recursos expressivos.
No site do laboratoriodoprocessoformativo [este site] estão publicados uma série de posts, artigos, fotos e vídeos que mostram a enorme quantidade de elementos necessários para essa pesquisa com alunos e colaboradores. Sem uma estratégia especifica não nos daríamos conta da enorme quantidade de elementos, atividades e condições necessárias para a efetuação de um acontecimento. Se apenas contássemos com o recurso do texto, para descrever alguns momentos dos Seminários de Biodiversidade Subjetiva, enumerando tudo que estivesse ali compondo aquele presente-lugar onde os corpos estavam se formando em tempo real, visível e invisível, precisaríamos da competência de um grande romancista e de uma infinidade páginas.
Descreveríamos o salão de grupo, sua adaptação, os equipamentos, as instalações, as janelas antirruído espelhadas, o chão branco onde as ações normais das pessoas aparecem como esculturas de si, os fios, a iluminação, o grande mundo lá fora constantemente lembrado. Além disso, descreveríamos as ações do câmera, do relator, as cartografias no quadro branco que chamo de ‘ovo’, as formas de exibição no telão, no monitor de televisão e no próprio ‘ovo’, onde as imagens dos corpos podem ser redesenhadas e compreendidas em sua relação forma-função. A internet de onde retiramos os mais variados vídeos de ciência, comportamento, arte, para compor com nosso ambiente cognitivo, os programas de edição que transformam o acontecimento captado em posts de imagem e texto finalizados a serem publicados no site ou que serão editados em hand-outs a serem retrabalhados e multiplicados nos grupos.
Teríamos muito mais trabalho para descrever as captações de imagem e texto, que, mais surpreendentemente ainda, irão alimentar em tempo real os grupos de particpantes em um grupo fechado no Facebook. Nssa camada virtual da Instalação os alunos encontram falas, cenas, fotos, teoria, referências de filmes, livros, autores, bem como diálogos literais e interações somáticas produzindo um espaço grupal como acontecimento (que chamamos também de “aquário”ou “cubo sobre a cidade”). Todo esse material poderá imediatamente ser revisto, estudado e utilizado, graças à agilidade do método REII – Registro Imediato Interativo, desenvolvido por Liliane Oraggio, relatora dos grupos. Por aí, vemos um pequeno exemplo de cooperação produtiva de ambientes e métodos.
Mais do que tudo, jamais seríamos capazes de descrever o que a composição de relações, momentos, falas e ações contam sobre a vida dos corpos ali. Essa estratégia complexa e relativamente barata, enfatiza, como parte da experiencia didática, a evidência de que vivemos e formamos nossas vidas, continuamente, em ecologias e que somos parte não apenas de famílias, mas de redes físicas, afetivas, cognitivas, tecnológicas, políticas, sociais, informacionais. O conteúdo não se separa do vivido, do registrado, das práticas, da própria instalação e das ações que sustentam essa produção do acontecimento-seminário onde os corpos estão imersos. É tudo autoevidente. Esse é o efeito que busco com essa articulação de elementos heterogêneos a que chamo, em homenagem a J. Beuys, de Instalação Didática.
Nesse sentido, mostrar e enfatizar a Instalação Didática – suas mídias e seu agenciamento de recursos que ultrapassam infinitamente o indivíduo – expressa, afeta e ensina tanto quanto as cartografias que conduzem o trabalho filosófico, clínico e pedagógico, em curso.
Para fazer funcionar a instalação é necessário, antes de mais nada, praticar e compreender o corpo como bomba pulsátil, conceito central de Keleman na sua Anatomia Emocional (Keleman, 1985), em que, assim como as medusas, o corpo bombeia-se a si mesmo nos ambientes, bombeando-os. Esse conceito biológico e performativo nos inclui imediatamente na realidade de que somos parte dos ambientes e, não apenas, que vivemos dentro de ambientes.
Aprender a se reconhecer como parte de múltiplas ecologias, saber-se um corpo na multidão, sensibilizar-se para a inteligência coletiva é o passo seguinte. Mas, essas evidências conceituais são refratárias a estratégias iluministas e apenas se deixam ser apreendidas numa captação entrecruzada, num ato de concretude da presença física, como prescreviam os físicos quânticos dos anos 1960. Esse é o pulo do gato.//
Referências
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Cushman, P. (1995). Constructing the self, constructing America. Menlo Park, CA: Addison-Wesley Publising Company.
Edelman, G. (1987). Neural Darwinism- The Theory of Neuronal Group Selection. Cambridge, MA: MIT Press.
Favre, R. (2010). Trabalhando pela biodiversidade subjetiva. Cadernos de Subjetividade, Núcleo de Estudos da Subjetividade. São Paulo: Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, Pontificia Universidade de Sao Paulo.
Favre, R. (2015). Na Instalação Didática.
Foucault, M. (1983). The Culture of the Self, (https://www.youtube.com/watch?v=F7LW1EWhD5M).
Guattari, F. e Rolnik S. (1986). Micropolítica, Cartografias do Desejo. Rio de Janeiro: Editora Vozes.