Em 1964, ano do Golpe Militar, eu tinha 21 anos e estudava filosofia na PUC de São Paulo. Minha primeira filha nasceu nesse ano. Mas já em 1966, J. A. Gaiarsa anunciava para o mundo brasileiro, em uma pesquisa da Revista Realidade, leitura imprescindível para pessoas esclarecidas, como já se comportava a juventude diante do sexo, depois da introdução da pílula anticoncepcional. Uma metamorfose se anunciava para a classe média brasileira. Nos filmes de Goddard, que eram assistidos em transe no cine Marajá da Rua Augusta, corpos e comportamentos parisienses de jovens sexuados e politicamente rebeldes, convocavam identificação e mudança. Caetano Veloso, chamava para algo semelhante, no Brasil, com Alegria, Alegria, em 1967. As forças conservadoras apertavam e destruíam as vidas, mas havia, ao mesmo tempo, uma outra força que tirava todas as coisas do lugar irresistivelmente.
Fui de imediato contaminada por aquela força.
A garota rebelde, desadaptada socialmente no ambiente da classe média dos anos 50, precocemente sexuada para sua época, encontrava seu cardume.
A cada dia uma nova mudança de visão das coisas e de comportamento se apresentava. E finalmente fui tragada para dentro da imensa onda que se formara no Brasil. Mas a identificação com os valores da Contracultura só veio um tempo depois.
Em 1970, eu tinha 28 anos, estava casada e já tinha duas filhas pequenas. Nesse ano, o corpo começara a entrar em cena no Brasil com o famoso Congresso de Psicodrama que acontecera nesse mesmo ano no MASP e Gaiarsa, em seu consultório, na esquina da Rua Araújo com a avenida Ipiranga já praticava grupos terapêuticos. Esse foi o ano do sinistro Campeonato Mundial de futebol em que o Brasil foi campeão.
Os grupos do Gaiarsa acolhiam as pessoas nesses tempos terríveis. Lá as pessoas se encontravam, pela primeira vez viviam em seus corpos, falavam de si, experimentavam emoções, dramatizavam sonhos, comportamentos e situações de vida. Era tudo muito intenso e cheio de sentido. Na calada das noites da Ditadura e na intimidade dos ambientes fechados, começava ser tecida uma cultura psi que viria a transformar a subjetividade da classe média brasileira.
Há um livro, escrito anos depois por Lucy Dias, na época, jornalista da Editora Abril, celeiro de um estilo militante e livre de ser, para homens e mulheres, naqueles tempos negros da Ditadura, que se chama “Enquanto corria a barca”, evocando, sugestivamente com esse título dos Novos Baianos, a velocidade da mudança que já deslizava rio abaixo. Na capa rosa, a foto-montagem de um jovem, metade guerrilheiro, metade hippie, já dizia tudo sobre aquele momento. Naquele inicio de década, havia um corpo, a ser desconstruído e remodelado, na luta armada ou no desbunde.
Percebi ali que para não perder o pé no desmanche cultural que se apresentava, urgia fazer uma mudança corporal em relação ao que me havia antecedido: como ser mulher, como estar na onda das mudanças políticas e de novos comportamentos, como reativar uma juventude tão precocemente capturada para dentro de um modelo conjugal, onde encontrar forças para sobreviver com as filhas fora do casamento. Vi com os olhos da sobrevivência que me cabia fazer uma conversa profunda com aquele modo de me usar corporalmente para estar no mundo. Nessa imigração para longe de um certo mundo mais instituído, mais familiar, em 1970, era o corpo que me guiava. Não podia mais ser de outro modo. Seria o corpo e seu uso que eu deveria abordar para acompanhar a rota da história.
Ao me colocar a questão do corpo, a questão da imagem se colocou logo em seguida. Assim que comecei a lidar com o corpo, me reconhecer como um corpo que se comporta, passei a buscar tudo aquilo que estava disponível naquele momento para agenciar essa transformação. As novas práticas estavam começando a chegar via argentinos, os mesmos que introduziram em São Paulo o Psicodrama moreniano de que me tornei logo usuária. Estes, soube bem mais tarde, foram os primeiros da América Latina, a frequentar o ambiente californiano onde o Movimento do Potencial Humano despontava. Foi através deles que primeiro tive notícia do que se passava em Londres.
Em 1970, todo mundo fotografava muito, captando a beleza selvagem dos corpos que despontava com a Contracultura. Revistas como o Bondinho agregavam fotógrafos inovadores. Essas eram revistas surgidas na esteira da revista Rolling Stones. O rock revelou grandes fotógrafos que registravam as expressões em movimento, o comportamento em transformação. Comecei também a fotografar. As crianças também fotografavam em casa o nosso quotidiano. Tudo era significativo e vivíamos uma aventura naquele inicio dos anos 70 embora o horror estivesse a dois passos de nossas vidas.
Do Tropicalismo, para o contato com Gaiarsa e seu espaço de psicoterapia e experimentação grupal na Rua Araújo, para o mergulho na Contracultura, no Psicodélico e no Zen, foi um salto. Nesse movimento, mudanças corporais imensas estavam sendo convocadas e um mar de imagens corporais, sendo disponibilizadas, pela nova cultura jovem americana. A mutação a ser operada era muito grande em relação àquele modelo da vida dos anos 50 e 60. Esse imenso volume de imagens, sobretudo a paixão por elas que se instaurara, foi fundamental para que os corpos pudessem se desconstruir e se reconfigurar por identificação, com uma outra moda, outros comportamentos, outra atitudes, outras práticas de relação familiar, amorosa, sexual, de trabalho, de dinheiro, de grupo, tudo, tudo.
O “como fazer” cada um desses comportamentos era explícito nas imagens. Os corpos fotografados dessa nova cultura, se mostravam habitando completamente a si mesmos, e não mais se posicionando dependentes do olhar da câmera. A celebrada “naturalidade americana”, a confiança no “direito de ser quem se é”, se apresentava como um novo modo de existir a ser conquistado.
No Brasil, com as novas mídias que começavam a aparecer, então, jornais e revistas independentes, o cinema marginal, as capas de disco, a poesia de mimeógrafo, contaminando as vidas com uma poética da fragilidade, sentia-se o risco e aprendiam-se nas novas formas e usos dos corpos, as novas estratégias existenciais.
O mundo das psicoterapias que despontava era o ambiente da mutação para a classe média. Lembremos que o curso de psicologia em São Paulo, a essa altura, existia há menos de cinco anos, mas a mudança de perspectiva que isso operou na cultura psi preexistente foi radical. As terapias se apresentavam para uma certa classe média, como eu, que se marginalizava, como a única maneira de suportar a desterritorializaçao violenta em curso e os grupos, sobretudo, passam a ser referencias nessa migração. Anos depois, escrevi um poema que me retrata nessa época.
Advertimes
Fui publicitária, redatora,
no tempo em que a Tropicália nos autorizava
a fazer estripulias fora da realidade do mercado,
que despontava sob nossos olhos, no Brasil.
Quando ainda se acreditava ser possível
fazer intervenções criativas na mídia,
burlando a própria mídia.
No tempo em que nossos heróis eram guerrilheiros.
No tempo em que os jornalistas
inventavam modos de passar noticias codificadas.
No tempo em que estávamos debaixo da ditadura militar
e havia a barra pesadérrima da repressão.
No tempo em que existia esquerda.
No tempo em que muita gente
que andava pelas agências de publicidade
era gente que vinha da área de humanas.
Gente que ia em passeata.
Gente que sonhava ser poeta,
artista, fazer cinema, escrever romance,
quem sabe voltar para as ciências sociais.
Alguns que militavam ou haviam militado em algum momento.
No tempo em que trabalhar com publicidade
não era vergonha para a oposição.
Gil tinha trabalhado com pesquisa de mercado na Gessy Lever,
Capinam era publicitário, Macalé fazia jingles,
Décio Pignatari brincava com a linguagem midiática.
No tempo em que Janis Joplin, a plenos pulmões,
animava nossa revolta e a imprensa nanica
nos ajudava a tirar sarro da desgraça.
Eu sentia fazer parte da esquerda criativa
e metia o pau no “sistema”, o dia inteiro,
na agência, com o pessoal.
Era o tempo em que as motos japonesas estavam chegando ao Brasil e eu tinha uma.
Montada nela, singrava o trânsito olhando a cidade ,
vendo pessoas de mil mundos levando suas vidas,
panaméricas de áfricas utópicas ,
enquanto refletia sobre o mercado
e apreendia as regras do jogo da massificação.
Trinta anos, filhas pequenas na garupa,
em meio a muita angústia, medo, o chão fugindo debaixo dos pés vertiginosamente,
vontade de experimentar, muita excitação, o olhar para além da família,
atravessada por todos os lados.
Foi nesse trecho de vida que comecei, já meio tardiamente,
a enxergar os jogos de força
no processo formativo
do tecido social e agir considerando-me como parte.
Nesses anos cruciais para o Brasil.
Exilar-se existencialmente em Londres, na rota de Caetano e Gil, foi o passo seguinte. E lá, conectar-se com um mundo onde se estava cultivando uma resistência cultural às novas forças do capitalismo que se expandiam, pela celebração do corpo e sua potência, em vez de submetê-lo à violência da Ditadura e da moral cristã, como se fazia em nosso mundo colonial brasileiro, foi finalmente o passo sem volta.
Era aguda a consciência de que uma aniquilação cultural acontecia no Brasil e que a nova colonização do planeta estava se dando em inglês. Meu coração era uma terra seca e eu andava pelas ruas cantarolando Luiz Gonzaga, como Caetano.
Mas ao mesmo tempo, como uma chuva, a nova língua estava sendo absorvida, umedecendo e fertilizando um rebrotar. Escrevo meus diários em inglês, absorvo os verbos e as expressões idiomáticas da nova cultura como se fossem uma língua sagrada, as ações emocionais do corpo são nomeadas em inglês, falo de sentimentos e experiências em inglês nos grupos, faço terapia em inglês, choro, grito, me desespero em inglês.
A cultura com a qual passei a lidar e lutar, para o bem e para o mal, numa infinita antropofagia tropicalista, nos quarenta anos seguintes, estava plantada.
Regina Favre, Junho 2016.