Ao chamar de instalação didática o processo que mostro neste post, estou expressando em primeiro lugar, meu apaixonamento pela figura de Joseph Beuys, criador dessa expressão, bem como o sentimento profundo de me identificar com o espírito de sua arte, suas lousas, seu conceito de escultura social. E em segundo lugar, afirmo a necessidade absoluta do uso de um agenciamento estético para o ensino e o estudo do corpo, a formulação de uma anatomia aberta para a mutação, suas ações, sua potência, seus múltiplos ambientes, suas redes, seus processos de subjetivação. Mostrar a realidade somática em contínua produção de si e combater os clichês de saúde, beleza, poder, celebridade, eternização que apequenam sua funcionalidade e potência de singularização, é uma tarefa que requer um entrelaçamento delicado de linguagens e recursos expressivos.
Uma inteligência coletiva.
Quando olhamos os diversos posts neste site, provavelmente, não nos damos conta da enorme quantidade de atividades e condições necessárias para a sua efetuação: propostas, recursos financeiros, tecnológicos e humanos, mobilização de alunos, sustentação de uma certa infraestrutura e muitos outros aspectos. Se apenas desejássemos descrever alguns momentos de um encontro dos seminários que acontecem no Laboratório do Processo Formativo e fôssemos enumerar tudo que estava ali compondo aquele presente onde os corpos estavam se formando em tempo real, visível e invisível, precisaríamos da competência de um grande romancista e de uma infinidade páginas para isso. Poderíamos, por exemplo, começar pelo salão de grupo, sua adaptação, os equipamentos, as instalações, as janelas antirruído espelhadas, o chão branco onde as ações normais das pessoas aparecem como esculturas de si, os fios, os chips, a iluminação, o grande mundo lá fora constantemente lembrado… Além disso, descreveríamos a ação do câmera, do relator, os sistemas de transcrição e gravação utilizados, as cartografias no quadro branco que chamo de ovo, as formas de exibição no telão, na televisão, no próprio ovo onde as imagens dos corpos podem ser redesenhadas e compreendidas em sua relação forma-função. O cabeamento, a internet de onde retiramos os mais variados vídeos de ciência, comportamento, arte, para compor com nosso ambiente cognitivo … os programas de edição que transformam o acontecimento captado em posts de imagem e texto finalizados que serão publicados no site ou que virarão hand-outs a serem retrabalhados e multiplicados nos grupos. Captações de imagem e texto, mais surpreendentemente ainda, que vão alimentar em tempo real, no Facebook, os grupos fechados de cada grupo onde os alunos encontram trechos de falas, cenas, fotos, teoria, diálogos do acontecimento grupal na instalação didática( que outras vezes chamamos de aquário) que poderão ser revistos, estudados e, democraticamente, utilizados por eles. Essa estratégia ágil, complexa e relativamente barata, enfatiza a evidência de que vivemos e formamos nossas vidas, continuamente, em ecologias… que somos parte não só de famílias, mas de redes físicas, afetivas, cognitivas, tecnológicas, políticas, sociais, informacionais. É esse efeito que busco com essa articulação de elementos heterogêneos que chamo aqui de instalação didática. O conteúdo não se separa do vivido, do registrado, das práticas, da própria instalação e das ações que sustentam essa produção. É tudo auto evidente. Esse é o acontecimento-seminário onde os corpos estão imersos. Desde os anos 60, quando eu ainda era quase uma garota, a frase lapidar de Marshall Macluhan nunca deixou de me impactar: a mídia é a mensagem. Nesse sentido, mostrar e enfatizar a instalação didática, suas mídias, seu agenciamento de recursos que ultrapassam infinitamente o indivíduo, expressa, afeta e ensina tanto quanto as cartografias que conduzem nosso trabalho, filosófico, clínico e pedagógico. Olhamos e imediatamente captamos… Ah, sim…e os corpos respondem a esse ambiente complexo e real… e é dessas respostas que extraímos a compreensão de corpo que é objeto do nosso estudo…. e assim vamos…
Para fazer funcionar a instalação
É necessário praticar e compreender o corpo como bomba pulsátil e aprender a se reconhecer como parte de múltiplas ecologias, saber-se um corpo na multidão, sensibilizar-se para a inteligência coletiva. Mas todos esses conceitos ou, mais precisamente, essas evidências, não podem ser apreendidos, descritos, expressos em seu movimento de devir, apenas intelectualmente. Eles só se apresentam pulsantes numa captação entrecruzada, num feeling, num ato de concretude da presença física… Veja o post Presença neste site. Mostrar a inteligência coletiva da instalação didática e o desdobramento das estratégias, práticas e produtos no acontecimento grupal nos ensina diretamente que estamos, sempre, dando corpo ao vivido e formando os ambientes de que somos parte. E que, consequentemente, é possível dissolver o individualismo exacerbado do capitalismo contemporâneo em nós, amadurecer nossas formas de conexão, formar comportamentos e modos de funcionar em cooperação, como parte de processos maiores… ser corpos na multidão, medusas nos mares, bombas pulsáteis… bombeando, pensando, agindo e produzindo nas redes que evidentemente são a nossa realidade…
Bombeando-se
Extraí o conceito de bomba pulsátil da Anatomia Emocional de Stanley Keleman. Em muitos posts neste site, desenvolvo a visão desse design evolutivo ampliando-o para as condições da nossa vida no ambiente global, como corpos na multidão cuja funcionalidade reside na contenção de si, na autonomia e na alta conectividade. Os corpos se produzem numa embriogênese continuada, se tecem a si mesmos como um dentro e um fora, uma superfície e uma profundidade. As bordas contém a excitação do vivido imerso no acontecimento. Os corpos se fazem em ambientes-acontecimento ao longo de sua história formativa, em gradientes de mais ou menos consistência, mais e menos excitação… Os corpos se configuram com os tecidos, evidenciam mais ou menos amadurecimento, mais ou menos potência de absorver o acontecimento presente e formar estruturas mais ou menos precisas com o vivido. Os corpos mostram claramente o que vivem. Os corpos quanto mais finamente conectados com os elementos e fluxos que se condensam em seu presente, quanto mais bombeiam suas ecologias, mais potentes se fazem… O COMO é a chave para compreendermos as ações dos corpos e para nos reconhecer como corpos, como fazemos o que fazemos com a nossa forma para sustentar presença. Nosso trabalho de vida é estruturar nossos modos de funcionar em relação ao presente, de modo singular, no embalo auto-produtivo dos corpos. Aprender e praticar. Não por uma razão moral, mas porque, bem articulada e em formas mais atualizadas, a vida se canaliza e funciona melhor em nós e nas nossas ecologias. A prática intencional do embodiment é a arte da pessoa comum. No exercício da bomba pulsátil combinado com a prática do COMO, aprendemos a manejar as bordas, atrair os ambientes com o vácuo interno, absorvê-los e bombeá-los de volta como expressão conectiva de si. O reconhecimento e manejo das bordas e da excitação são centrais para o amadurecimento da nossa real condição como parte dos processo maiores. Nosso alfabeto é binário: expansão e contração, em amplitudes e formas quase infinitas. Crescemos ao longo da vida, podendo complexificar da fusão para a cooperação… da dependência absoluta para a autonomia cooperativa… esse conceito psicológico, politico e biológico ao mesmo tempo, é um conceito que só existe quando praticado. As intervenções, como veremos abaixo, acontecem nos encontros grupais não como uma prática clínica em si mesma, mas como uma ajuda para que um corpo possa ir se alinhando cada vez mais finamente com o processo formativo que prossegue. Nossa mestra é a medusa. Veja o vídeo Embodiment en Buenos Aires neste site.
No exercício da bomba pulsátil: linguagem em ação.
1.Identificando: o que é
Aluna – tenho dificuldade de ficar com meu corpo. É muito difícil. Prefiro não pensar… muita informação… é muita loucura… forças muito opostas … uma superexcitação…
2. Identificando: como é
Regina – põe os pés no chão… Aluna– me conforta ficar espremida, estou sempre com a mão perto da boca. Regina – você foi ganhando intensidade desde o seu trabalho no grupo de anos atrás. Daquela profundidade vazia que você pode vivenciar com as imagens que produzimos naquela época, você foi se enchendo de intensidade, de excitação… atualmente, parece que você está produzindo e administrando intensidade de outro modo. Aluna – me sinto muito mais forte e presente…
3. Identificando: um caminho formativo
Regina – naquela época o que havia era um corpo de carência, mais para esvaziado de si… isso é o que atravessava aquele trabalho… e, lá, você termina pegando a vida com força… são as últimas imagens daquele registro. Hoje a questão é outra… você não dá conta de modelar inteiramente a sua intensidade com as suas bordas e sente vergonha. Aluna– Sim. Tem uma superfície tímida (mão que esconde a boca)… mas aqui eu quero… me percebo transbordando e não sei o que fazer.
4. Identificando-se com a bomba pulsátil.
Regina – vamos experimentar fazer esse movimento grande… senta grande… espaço… você vai saborear grande essa onda que vai para fora e para trás… a bomba do tórax… contrai intencionalmente e deixa expandir sozinha. Você está querendo muito da vida… quero mais quero mais… assume isso para você… tudo… torna clara a ação para você a partir da bomba pulsátil, bombeando no ambiente….(boca e braços se abrem grande… expansão) quero pegar a vida com tudo.. mãos… boca…
5. Identificando-se com o QUEM das ações da bomba pulsátil
Aluna– já estou feliz…. assim fica tudo bom…
Regina – sustenta esse pulso dentro, deixa acontecer a intensidade aí para viver a experiência que te cabe viver.
Aluna (chora) – isso dói… agora preciso me confortar… Aluna conforta-se
Regina – sim, fazendo esse travesseirinho de mãos… assim você se toma de volta… conforta-se… do grande esforço emocional que é só conseguir expandir com a forma que você é atualmente…
Regina – desta vez, você está podendo retirar-se e confortar-se… ir e voltar… você está começando a organizar essa contração na sua forma cuja tendência, ainda imatura, é sobretudo, expandir … nessa aprendizagem em que você se capta expandindo sempre, você descobre a volta sobre si, começa a criar contração e formar mais tônus de superfície.
Aluna – é muito bom saber que posso ir e voltar…
Regina – sim… você começa a se chamar de volta… volta aqui… expandir sobre o ambiente e agora voltar… cuidar-se… acolher-se… são ações da bomba pulsátil em seu processo de amadurecer, completar o ciclo de expandir e contrair, alimentar intensidade, fortalecer bordas…
Aluna – sim, foi bom fazer isso.
Relatora– no registro dela, em outro grupo, anos atrás, havia também esse gesto de segurar o rosto para se reconhecer. Hoje, isso se esboçou de novo. E em seguida, surgiu o gesto de se confortar. Na construção da contração, ela agora tem dois gestos: reconhecer
…os gestos, as modelagens experimentais da bomba pulsátil, os verbos, os diversos sujeitos dos verbos, construindo quem ainda não somos, praticando nossa arte de pessoas comuns, em nossas instalações existenciais…
Regina Favre
Julho, 2014