Na última e quarta parte dos Seminários de Anatomia Emocional e Biodiversidade Subjetiva estudamos como os corpos se fazem sempre dentro da história social e dos jogos coletivos de poderes e de valores.
A essa altura da aprendizagem encarnada do processo formativo, já é possível reconhecer, estudar e agir sobre os modos com os quais fazemos corpo nos nossos mundos com forças sociais e vínculos. E como estes modelaram e continuam moldando, nossa realidade somática e conectiva, segundo a lógica e a gramática formativas estudadas ao longo dos três módulos anteriores.
Até esse momento, então, muitas ações foram compondo a estratégia através da qual mergulhamos na evidência de que somos produtores e parte de um processo formativo contínuo, sempre seguindo o roteiro ampliado da Anatomia Emocional, na cena do Seminário em curso.
Sucedem-se falas formativas minhas, conversas entre e com o grupo, teoria e exercícios extraídos do próprio acontecimento individual e grupal, contemplação de gravações, de fotos, de ovos, solos dos participantes, intervenções clinicas pontuais, participação de colaboradores … alças de feedback sobre o acontecido, resultando numa produção de conhecimento corporificado e cartografado daquilo que é nosso foco constante: a produção dos corpos.
Os ovos contêm os diagramas do pensamento que organiza a experiência do processo formativo que vai se desdobrando ao longo dos encontros. Eles abrangem o como, o quando, o onde, as condições, os ciclos, os ritmos, os princípios com os quais se produzem os corpos, sua relação com a linguagem, com a história social, com a biologia molecular, com as neurociências e, sobretudo com o pensamento kelemaniano. Os ovos, quadro em forma de ovo, apontam para uma gravidez, uma possibilidade de sempre mais, para o que ainda não existe,sinalizando que esse modo de notação do acontecimento articulado à teoria da produção de corpo é uma força geradora de pensamento, como se fosse a mente do ambiente sendo gerada através do mapeamento do vivido.
À medida que as pessoas vão assimilando esse saber em seus corpos, em sua linguagem e em seus cadernos, vai se revelando, como uma realidade somática, que esses corpos imersos nesse campo corpante (bodying field) de cada grupo em particular, dentro dos ambientes maiores e menores, são bombas pulsáteis que funcionam como processadores ambientais “bebendo e babando ambiente”.
Os grupos, através desse dispositivo, têm a oportunidade de viver em tempo real, o secretando e o modelando corpo, o intervindo em suas formas através de práticas específicas, o maturando, no ato de co-corpar com as condições presentes, criando ligações que vão ganhando em eficácia na produção de si e da cognição.
É importante assinalar que, nesse pensamento que tem sua origem no pragmatismo americano, o uso do gerúndio como substantivo é de total importância para a comunicação da nossa condição processual que se evidencia na experiência.
Nesse final do programa, o design existencial de cada corpo em suas ações e expressões preservadas muscularmente pela memória do seu uso repetido, amplia seus sentidos. Contemplamos, nesse momento do grupo, através do acervo de fotos de cada um, os corpos em suas modelagens vinculares e sociais, seus caminhos formativos, sua participação e modos nos diferentes ambientes e a construção de sua trajetória até o presente. Sempre iluminando a questão de como esse corpo e com que forças e combinações musculares sustenta sua forma presente. E finalmente, descobrimos, dentro da lógica formativa de cada corpo, como intervir sobre essa configuração atualizando-a um pouco mais para que dê passagem às forças do presente, alimentando delas sua continuidade.
Nesse ambiente de imagens, imagens são colhidas todo o tempo, em vídeo pelo cameraman presente no grupo e em foto pelo próprio grupo que passa a câmera fotográfica de mão em mão. Nessa fase final, em particular, trabalhamos com essa tarefa que se constitui na seleção de fotos de vida de cada participante, editando um continuum que mostre desde o nascimento até a vida adulta, as forças e os ambientes formativos que constituem sua forma somática subjetiva atual.
Desejo com essa estratégia transmitir um sentimento poético de concretude e presença, como se colocássemos essas fotos num slideshow acelerado e pudéssemos ver um corpo crescendo e se metamorfoseando dentro de sua lógica formativa particular. Vamos, ao mesmo tempo, encontrar na forma atual de cada corpo essas direções do crescimento em ação, configuradas num jogo de forças e sentidos.
O trabalho com essas imagens da história pessoal em transparências no retroprojetor, é um momento de grande intensidade emocional e cognitiva. A luz incandescente de um equipamento manual é importante para esse clima de aparição, do que foi vivido há muito tempo e ainda está lá.
As imagens – sejam elas das gravações ou das fotos, atuais ou da trajetória de cada um, entre outras muitas razões –, são importantes por nos fornecerem evidências (evidência, vidência, ver, ler o design do que se vê, ter a experiência imediata) de que os corpos vivos são ação lentificada, solidificada em tecido e estão sempre em ação, modelando ações… alguma ação… sobre si mesmos e sobre o ambiente… uma anatomia de tubos dentro de tubos tal como descreve Keleman em sua Anatomia Emocional, pulsando, trazendo para si, conduzindo, processando através de uma infinidade de ações, em múltiplos níveis interconectados, moldando-se e expressando-se sobre o ambiente,articulando-se ou afastando-se dos outros corpos, de quase infinitas maneiras(n-1), sempre produzindo a si mesmo e aos ambientes de algum modo.
Esse modo de funcionamento em múltiplas camadas do acontecimento no ambiente-seminário resulta em um reconhecimento constante dos modos de funcionamento ali-no-presente e uma relação cada vez menos narcísica, seja negativa ou positiva, com as próprias imagens, o que resulta numa naturalidade que é captada dentro da artificialidade evidente da presença dos elementos de gravação e exibição de imagem… Captar imagem, deixar-se captar, assistir-se, reconhecer-se, exercitar gramáticas, praticar o ato de corpar, os diferentes aspectos do design anatômico dos comportamentos, ações e expressões torna-se uma linguagem cada vez mais corrente nos grupos sob minha regência.
Reger o processo grupal, para mim, Regina, em seu fluxo contínuo de presenças somáticas e ações que as sustentam, é, por excelência, o exercício do contato imediato e encarnado com o acontecimento vivo que me alimenta na criação da linguagem e do conhecimento formativos. O acontecimento vivo, em sua metamorfose permanente, requer uma posturação dos afetos, uma poética e uma oralidade específicas para que se comunique.
Nessa fase final dos seminários, trabalhamos mais diretamente sobre a ampliação e aprofundamento da potência e capacidade pessoal de produzir e sustentar diferença e conexão dentro do ambiente maior com suas características particulares de produção da subjetividade contemporânea (clique no link para ler o artigo Trabalhando pela Biodiversidade Subjetiva) que se expressa em todos os vínculos, próximos e distantes.
No vídeo abaixo, na intimidade do grupo, falo sobre minha memória da imagem caseira ou amadora da infância e sobre a cultura da imagem da pessoas comuns gerada por tecnologias acessíveis a todos na vida afetiva dos diferentes coletivos e como esse meu bloco de infância (Guattari) está ativado nessa prática grupal que descrevo.
O interesse desta vídeo-edição em particular, está no registro da intimidade quase caseira de alguns dos tons e climas em que a aprendizagem formativa às vezes se dá no Laboratório do Processo Formativo.
Alguns trechos re-editados desta gravação:
A máquina fotográfica Kodak de caixote foi inventada por George Eastman, um pequeno funcionário de banco em meados do século 19. Foi uma invenção de gênio, tão simples, que se disseminou vertiginosamente e virou imediatamente a companhia de todas as pessoas. Todos passam a registrar suas vidas. As mulheres, por exemplo, começam a fotografar porque é fácil. Anúncios dessa época trazem moças super naturais, com seus chapéus, suas saias, fazendo piquenique e fotografando… com sua câmeras Kodak.
Podemos nesse tipo de cena como ver como o acesso fácil aos bens e saberes é parte do espírito democrático americano. Surge aí aquela coisa prática, o snapshot, o instantâneo, a tomada rápida no cotidiano das pessoas que vai alimentando a cultura de guardar momentos da naturalidade e da simplicidade do cotidiano que os americanos tanto prezam. Essa é uma visão democrática que reconhece que todo mundo tem uma vida e todas as historias são importantes. Mas ao mesmo tempo, essa prática inocente inicia um novo modo de representar as vidas e começa a dar forma à futura sociedade do espetáculo… esse é o paradoxo.
Quando evoco aqui a produção caseira Kodak do meu pai, estou falando do direito de cada cidadão ter a sua própria produtora de imagens, um exercício que também pode nos proteger da estereotipia em nosso processo formativo. Quando pescamos uma imagem nossa no nosso acervo de fotos, como vamos começar a fazer hoje, reativamos essas imagens e contribuímos para salvar da homogeneização espécies de comportamentos destinados à extinção pela ação da mídia. Salvamos espécies de comportamento e podemos voltar a cultivá-las e maturá-las.
A apropriação tecnológica do snapshot é totalmente simples e fácil, tanto que se expandiu e dominou o mundo. Dependendo de como se opera, pode ser vivida de uma maneira íntima, própria, afetiva, não-glamourizada ou estereotipada.Com o despiste que fazemos aqui gravando, mostrando, problematizando as ações e as formas, corpando, experimentando, brincando, vivendo, emocionando, conversando, tudo ao mesmo tempo, estamos trabalhando com a imagem e imagens no melhor sentido desse tipo de foto americana.
O valor da naturalidade americana dos corpos e a possibilidade de captar o único de cada um que os fotógrafos americanos trouxeram para o mundo das imagens abriu uma outra possibilidade para os corpos antes capturados pelas imagens do poder e da persona na fotografia posada. A tecnologia barata aqui tem esse grande valor de descolonizar, em primeiro lugar, o olhar sobre si gerando um resultado que é a funcionalidade dos corpos que com a ajuda dessa prática vai se instalando. Nós aqui vamos ao mesmo tempo praticando corpar, trazer as imagens sobre o próprio processo biológico de crescer um corpo (to grow a body) que é aquilo que ocorre em cada um: cultivar, secretar corpo continuamente segundo imagens de si.
Existe uma receita genética de crescimento. Mas é uma receita de crescimento social (vincular) que vai sendo modelada pelo interjogo de imagens de si e o suporte afetivo das intensidades. É assim que se constrói um corpo.
Aqui, à medida que vamos tendo esse retorno de nossas imagens sobre nós e que vamos praticando essas imagens no nosso próprio processo de corporificação, vemos o embelezamento e a naturalidade surgindo nos corpos. O embelezamento dado pela naturalidade e funcionalidade que emerge nesse tipo de uso dos corpos. Praticamos aqui funcionar a partir do nosso presente corporal… tal como o vemos e o reconhecemos… Então podemos assumi-lo. Vemos, então, que beleza não é o ideal, mas está diretamente relacionada com o funcional.
Minha relação com fotografia passa pelo meu pai. Meu pai sempre fotografou, sempre filmou, quando eu era criança. Quando eu tinha 5 anos, meu pai foi uma vez para o Rio de Janeiro e comprou uma câmera 8. Ele passou a gravar o cotidiano da gente, na rua, os vizinhos, a praia quando a gente tirava férias, aniversários. Era aquela coisa de 2 minutos, um rolinho desse tamanho que ele mandava revelar nos Estados Unidos. E quando voltava a revelação, juntava um monte de vizinhos de noite em casa, minha mãe fazia um bolo. Todo mundo assistindo cenas da nossa vida na parede da sala de jantar… olha fulano!… passa de novo, passa de novo!… O projetor emitia um cheiro inesquecível da lâmpada esquentando a pintura.
A fotografia sempre foi muito importante para mim… minha avó que morava com a gente veio da Bahia. Ela deixou a Bahia para trás e trouxe o que ela pode na mala… restos da casa, roupas, a camisinha de batizado do meu pai, a escritura da casa vendida, milhões de coisas… o guarda-roupa dela era um brechó absoluto. Abria o guarda-roupa e aquele mundo invadia a gente.
Ela tinha misturado… santinho, santinho de missa de sétimo dia de um de outro parente, fotos de família, era uma misturança… eu não sabia quem era parente, quem era santo, quem era morto, eu não sabia quem era quem . Ela me deixava brincar com aquilo tardes inteiras. Eu ia para o quarto dela e brincava, botava as fotos, botava os santos todos pelo quarto. Era a Bahia que baixava naquele mundo imaginário. E ela contava histórias sem fim… fulano, beltrano.. ela era ótima para contar histórias, ela ia do drama ao cômico… era uma grande contadora de histórias.
Esse imaginário das fotos foi sempre muito forte para mim. Eu aprendi cedo a gostar de imagens. Meu pai sempre fotografou muito, sempre contaram muitas histórias a partir de fotos na minha família. Tios gostavam de fotografar… era a influência da fotografia americana, do valor da pessoa cotidiana, da pessoa normal na fotografia, com essa naturalidade… desse tipo de fotografia que são fotos não posadas. Acho que tem totalmente a influencia desse tipo de fotografia no nosso trabalho aqui, desse olhar, que passa pelo meu pai, passa por essa cultura… essa mistura de imagens da minha casa. Os livros de medicina do meu pai misturados com a revista Life dos anos 40 na estante da sala. Aquelas fotos absolutamente fantásticas da revista Life, tanto de cenas boas como cenas de guerra, de soldados, de judeus nos campos de concentração, as pilhas de corpos… e aqueles livros de medicina onde eu via aqueles corpos pelados, aqueles livros de patologia clinica do meu pai… eram aqueles peitos com tumor, aquelas línguas estouradas, aquelas bocetas horríveis…. foi assim que eu entrei em contato com esse corpo que é misturado com histórias vividas. É a presença do meu pai nesse tipo de olhar.
Esse gosto de mexer com imagens… acho que ter reencontrado, nos 15 anos que frequentei o ambiente Keleman , esse tipo de imagem americana…que eu amava… encontrei isso em Berkeley … havia uns brechós maluquíssimos onde a gente encontrava todos os elementos do imaginário americano em nós… bacias e bacias de fotos de gente, snapshots, instantâneos da vida das pessoas, sobretudo dos anos 40. Era a cara das fotos que tínhamos na nossa casa. Comprei muitas fotos dessas. Fotos de vidas normais… o menino com o cachorro, a criança na banheira, as irmãs mostrando a roupa que se acabou de costurar. Coisas do cotidiano mais cotidiano possível… eu amava essas fotos… Vi também, nessa época, uma exposição que encheu o SFMOMA de snapshots… todas as paredes, todos os andares…
E o Keleman tinha esse gosto também pela imagem, com esse tipo de gravação caseira. Sempre encontrei no mundo dele essa gravação caseira, que tem sua origem na Kodak que facilitou para as pessoas levar para o cotidiano delas a possibilidade de serem artistas do próprio cotidiano. O Keleman praticava isso e isso me encantava participar dos seminários dele, interagindo com ele, esse trabalho em que o pensamento se dá ser através da imagem, das pessoas se verem e se trabalharem através desse monitoramento pela imagem…
Fui me apropriando dessa forma de trabalhar e complexificando-a. Mas (re)encontrar nele o gosto parecido com o gosto que meu pai tinha foi muito forte para formatar e confirmar meu olhar nessa maneira de trabalhar e pensar.
Então é isso: as fotos têm uma raiz muito profunda na minha história, no meu gosto pelas imagens. Imagens que permitem suspeitar histórias de corpos em suas vidas e seus mundos…
Regina Favre, janeiro 2011