Artigo publicado originalmente no Cadernos de Subjetividade, 2010, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, PUC-SP
Conceitos e práticas são parte da história cultural. Acredito que os saberes e práticas corporais, tais como nós os concebemos hoje estão enraizados na Europa, nos meados do século XIX, como um subproduto da sociedade industrial. A mudança da produção artesanal para a produção industrial remodelou completamente as tradições culturais e artísticas, as concepções sobre forma e linguagem, valores, aparência das cidades, ruas, casas, seus interiores, exigindo um novo uso dos corpos para produzir e incorporar todas estas realidades. A pressão vinda do aumento das intensidades, dos problemas e dos benefícios produzidos pela indústria imediatamente sacudiu os modos de uso anteriores do corpo.
Ao mesmo tempo, entre outras transformações filosóficas e científicas, Darwin, com sua teoria evolutiva promove a maior revolução na auto-imagem do homem desde o início da história, retirando o criador de uma vez por todas da cena e apresentando os homens à sua animalidade e capacidade adaptativa, permitindo, a cada um, ver em seus corpos a continuidade dos corpos em sua cadeia evolutiva.
Com Darwin, o corpo, pela primeira vez, torna-se real e acessível como comportamento e funcionalidade solidificados anatomicamente enquanto espécie, podendo moldar-se de maneira individual.
Como o capitalismo industrial e o conhecimento moderno do corpo cresceram juntos
O capital e seu poder, inicialmente, tinham a configuração visível de fortunas familiares turbinadas pelas novas indústrias. Mas isso foi só o começo.
Com todas as transformações dos poderes, dos sentidos, das tecnologias industriais, da velocidade de transporte e dos novos modos de produção e distribuição do dinheiro, novas noções e práticas dizendo respeito à auto-regulação e autonomia dos corpos estavam prontas para aparecer e mesmo urgiam ser formuladas como um antídoto dos primeiros sinais do estresse da cultura ou doenças emocionais tais como começavam a ser observadas nesse momento.
A mesma velocidade pode ser vista na multiplicação de técnicas corporais que, na verdade, não são apenas técnicas, mas métodos que refletem as diferentes perspectivas do corpo necessitando regular a si mesmo.
A invenção da juventude, também nesse início de século, conta enormemente como uma importantíssima configuração social da subjetividade e é um capitulo a parte, sem dúvida, a ser incluído no tema do corpo.
Rompendo os limites dos ambientes acadêmicos e médicos, lugares tradicionais do saber, pesquisas e experimentos conduzidos por indivíduos ou pequenos grupos independentes na Europa, resistentes ao modelo corporal difundido pela escola de educação física de Berlim, foram fundamentais para o desenvolvimento das práticas e teorias corporais que moldaram essa nova cultura, praticamente, entre os anos 20 e o final da 2ª Guerra.
Esses jovens precursores que, para abrir a sensibilidade de seus corpos aos acontecimentos que se constelavam em torno da 1ª guerra, foram experimentando seu potencial somático como um aprofundamento trágico do presente corporal vivido e se contrapondo à rígida, autoritária, perigosa e estéril forma do corpo moldado pela educação militarista germânica. Esses devem ser considerados o marco zero da futura cultura de corpo que afetará a todos nós. A figura de Elsa Gindler cujos grupos eram freqüentados por certos psicanalistas também resistentes, entre os quais se inclui Reich, é paradigmática nesse novo modo de subjetivação do corpo que começa a se configurar precisamente nesse momento.
Escapando da destruição que se avizinhava, atraídos pela promessa da democracia na América, esses pioneiros europeus que em duas décadas já haviam se tornado criadores e praticantes dessas novas concepções corporais, migraram para um ambiente onde essa nova cultura iria encontrar total acolhimento na tradição filosófica do pragmatismo americano, nos valores do corpo e da vida natural celebrados pela literatura, da disciplina interior, da experiência religiosa e da iluminação, e principalmente, da imensa prosperidade e otimismo do pós-guerra.
A partir deste encontro, floresceu nos Estados Unidos, em meados dos anos 50, associada às filosofias sociais da época, a cultura à qual nós nos consideramos pertencer e sobre a qual devemos fazer uma operação crítica para que possamos utilizá-la. Nesse momento, também, a cultura americana apontava para um caminho de expansão por todo o planeta.
O Fordismo e a modelagem serial dos corpos
Philip Cushman(“Constructing the self, constructing America”,1995) explica esta função de superexpansão. “Uma das tarefas dos anos 50 era converter a sua poderosa máquina de guerra internacional numa economia de paz, viável internacionalmente. Isso não era uma tarefa fácil num momento em que o país vinha de recessões com o espectro da Grande Depressão nunca longe da memória das pessoas. Mas nas décadas que se seguiram imediatamente à 2ª Guerra Mundial, a economia dos Estados Unidos aprendeu uma das lições mais importantes da guerra: para estar fora da depressão, o capitalismo do século 20 tinha que basear sua economia numa contínua produção do consumo de bens e serviços. Portanto, os grandes negócios tinham que desenvolver modos de vender bens que não fossem essenciais nem bem-feitos. Em outras palavras, o país estava agora dependente de produzir e vender produtos não essenciais e rapidamente obsolescíveis. Serviços e experiências que, para comprar, os consumidores nunca pudessem economizar o suficiente. Portanto, os bancos passam a ter que desenvolver novas formas de crédito fácil. Consumir em vez de poupar, permitir-se em vez de sacrificar-se, tornou-se o estilo predominante. Pessoas passaram a tomar conhecimento de novos produtos no pós-guerra através dos anúncios de rádio, revistas, jornais e televisão e, muito rapidamente, através dessas mídias, passaram a aprender como manejar suas vidas e finanças. Para se manter “científico”, moderno e saudável, era absolutamente necessário consumir continuamente novos produtos domésticos. Assim uma nova configuração do self tinha que ser construída.”
Como esta força modeladora é percebida no Brasil
Nicolau Scevcenko (“Historia da Vida Privada no Brasil – vol. 3”, 1998,), observou como esta nova configuração afetou a percepção brasileira. “Com a 1ª. Guerra Mundial, a indústria de cinema européia colapsou e os Estados Unidos herdaram tudo, construindo um monopólio virtual de produção, distribuição e exibição mundial. Com o surgimento do cinema falado e os aumentos incríveis dos custos de produção, os pequenos estúdios foram à bancarrota e apenas as grandes corporações de Hollywood sobreviveram. Os sistemas de estúdio foram desenvolvidos racionalizando, otimizando e reduzindo consideravelmente os custos e na sua contrapartida promocional foi criado o mito das estrelas. Os filmes de Hollywood criaram e espalharam como um dogma o padrão de beleza das estrelas de cinema que se tornaram as alavancas principais e promocionais de novos hábitos de consumo e estilos de vida identificados com o “american way of life”. Vinícius de Moraes, poeta brasileiro e diplomata, tem um poema desta década chamado “História Apaixonada, Hollywood, Califórnia” no qual ele se coloca numa posição onde toda a sua vida é reinterpretada como uma sucessão de clichês hollywoodianos. O modo de sentar, dirigir o carro, encarar uma garota , namorar ao pôr-do-sol, segurar um copo, flertar, flertar e ser esnobado, comer fast-food, chamar o garçom, as roupas que ela usa, jogar boliche, o meio sorriso sarcástico, a súbita mudança de humor, o modo de acender um cigarro com uma única flipada do isqueiro. Tudo isso vinha da tela do cinema. O poeta sente que a sua vida não vem da sua interação com as pessoas em volta dele, mas, em vez disso, de um time de técnicos desconhecidos do outro lado do continente. Isso não é um exagero. O cinema é uma arte complexa, uma soma de técnicas revolucionárias de comunicação visual, tais como close-ups, efeitos emocionais dos recursos de edição – como ritmo, som, música, expressão facial e corporal, o glamour da juventude, as coreografias atléticas, as maquiagens, os penteados, o guarda-roupa, os cenários e mais do que isso o poder esmagador do sex-appeal. Tudo isso ampliado numa tela colossal irradiando o seu brilho prateado e hipnótico na escuridão do cinema. O que Hollywood levou às últimas conseqüências foi a descoberta, em grande parte tomada dos surrealistas e expressionistas que escaparam da Europa nos anos 30 e encontraram trabalho na Califórnia, de que os filmes são uma arte para os olhos e o corpo inconsciente e não para o intelecto e o discurso verbal.”
Quando os filhos do Papai Sabe Tudo cresceram…
Podemos ver, então, como a América do pós-guerra dos anos 50 ganhou a sua versão glamurosa internacional, primeiramente por essa auto-modelagem cinematográfica altamente cobiçada por todos.
Finalmente nos anos 60, a modelagem subjetiva da juventude espalha-se com o cinema e a música: o rebelde que não quer o estilo de vida dos seus pais para si, a formatação anterior que foi rigidamente modelada pelos valores e comportamentos da sociedade de consumo.
Da arte moderna, da dança moderna, do modo de representar do Actor´s Studio, da literatura beat para a cultura do rock, para o movimento feminista, para o movimento hippie, para o movimento psicodélico, para rebeliões estudantis de 68, para a contracultura, para a cultura alternativa, foi um pulo.
Entre os jovens, outro modo de conceber o corpo e novas práticas de si passam a ser desenhadas. Nesse preciso momento, a herança da resistência corporalista germânica à rígida modelização do pós-guerra americano se faz útil e presente face esse apogeu do corpo protestante.
Na onda dos novos movimentos sociais, as práticas corporais trazidas pelos humanistas europeus imigrados para a América, passam a ter um grande papel na desconstrução dos usos de si profundamente desvalorizados por esta geração e na composição de novos usos do corpo. Grupos, turmas e amigos identificados com o espírito dessas práticas e idéias se agregam, sobretudo em Nova York, o melting pot, impulsionando novos modos de se relacionar, trabalhar, viver, ter sexo e, mais adiante, conceber família e gênero, dinheiro, educação, raça, cultura, política e poder.
Os novos paradigmas voltam para a Europa
Movida pela mesma fé na mudança, na aventura e no desafio de si até o fundo de si, esta nova cultura corporal, influenciada nos Estados Unidos pelas idéias libertárias de Reich, também imigrado com seus pares alemães, já remodelada nos Estados Unidos, se reexporta para a Europa. E ali encontra as sementes deixadas por Reich que já estavam produzindo frutos a partir das várias tendências educacionais, terapêuticas, psicoterapêuticas que já estavam abertas, famintas, para se misturar com o modelo americano. Esta nova cultura proliferou rapidamente como modos coletivos de viver e fazer, expressões culturais e artísticas, comunidades urbanas e rurais, núcleos de crescimento pessoal, psicoterapia, praticas corporais e ativismo político.
Nos anos 70, tanto na Europa como nos Estados Unidos, práticas e métodos, fossem exercidos como atividades de grupo ou psicoterapêuticas , manipulações de corpo ou exercícios, passaram por uma multiplicação espantosa. As pessoas ansiavam por mudança, mudando seus corpos. Juntavam-se a grupos, buscavam terapias, desejavam se tornar terapeutas.
Os group leaders exerciam uma influência extraordinária na vida das pessoas.
Havia um ideal de criar um mundo à parte, dito alternativo, que poderia influenciar o sistema de fora para dentro.
Enquanto isso, abaixo do Equador…
No Brasil, desde os meados dos anos 60, o Tropicalismo, como um movimento artistico, literário, musical e político, expressava a urgência para nós de espanar nossas tradições conservadoras, caminhar contra o vento, sem lenço e sem documento, e incorporar o novo crescimento industrial, reformatar nossos corpos e absorver a nova realidade mundial que explodia nas bancas de revistas. Levantava-se aqui também uma força desconstrutora e proliferante similar, guardadas as proporções, àquela surgida durante a primeira guerra em torno de Berlin.
Com a atmosfera letal das ditaduras latino-americanas, muitos brasileiros se tornaram política ou existencialmente exilados. A afinidade com nossa necessidade, certamente, permeabilizou-nos e atraiu-nos para esses novos paradigmas de libertação através do corpo que prosseguia em seu crescimento, principalmente, na Inglaterra, solo fértil, então, para os novos padrões de comportamento. Muitos se abrigaram nessa London London.
Em 75, algumas pessoas portadoras dessa marca, ao voltar para o Brasil, participam da fundação do curso de psicoterapia corporal no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Nos anos 80, em busca de formação profissional, alguns grupos já poderiam ser vistos montando no Brasil workshops com representantes de escolas de psicoterapia corporal que já se haviam organizado internacionalmente e estavam se difundindo no mercado. E no final dos anos 80, um número crescente de pessoas ligadas a essas escolas já formatadas como empresas, representantes de formações profissionais reichianas e neo-reichianas, já tinha se instituído.
Não se pode deixar de mencionar as forças da invenção, da alegria e da liberdade que continuaram a se expressar em certos grupos e encontros dessa geração de profissionais e militantes denominados reichianos, gerando frutos que prosseguiram e se diversificaram.
Teorias e vidas no Brasil: condições específicas
Essas idéias e práticas fizeram sentido no Brasil, de um modo muito peculiar, diferente daquilo que aconteceu na Europa e nos Estados Unidos. Num primeiro momento, elas se juntaram às forças que culturalmente combatiam os efeitos destrutivos da ditadura nas vidas das pessoas.
É bem conhecido como a psicanálise, um certo tipo de psicanálise militante, que era altamente desenvolvida tanto no Brasil como na Argentina, desempenhou um papel importante como aliada nesta cultura de resistência política. Então, era completamente natural que certos divãs generosos no Brasil abraçassem a causa e gestassem o então chamado movimento reichiano recém-nascido. Assim, fica também evidente que, dada essa afinidade, o reichismo que inicialmente vingou no Brasil foi o da Análise do Caráter, em suas variações, considerado na sua época, anos 30, um avanço político e metodológico, em relação às idéias de Freud.
J.A. Gaiarsa, inimigo declarado da psicanálise e com grande acesso à mídia, tem um papel importantíssimo na criação de um campo onde toda uma geração foi introduzida a uma cultura reichiana despsicanalizada. Mesmo assim, o primeiro grande esforço assimilativo no campo psicoterapêutico brasileiro corporal dos anos 70, foi a busca de uma estruturação teórica de respeito face a cultura psi pré-existente. Acontece uma tentativa de assimilação de uma base psicanalítica para sua prática, encontrar um lugar para noções tais como id, ego, superego, inconsciente e transferência. Entretanto o corpo em toda a sua força e maravilha permanecia intocado teoricamente.
O novo capitalístico, novas teorias e práticas do corpo
O capitalismo, quebrando fronteiras nacionais, começa a operar como mundial e integrado. A narrativa familiar, como pano de fundo das nossas vidas e trilha da visão psicanalítica, mostra-se como uma pequena parte da narrativa histórico-mundial e a história social exige importância na hermenêutica da subjetividade.
Isso mostrava que havia uma resposta metodológica e teórica para o capitalismo industrial de base patriarcal e seus efeitos nos corpos subjetivos, e uma outra, bem diferente, que pressionava por formulação e invenção de novos modos de nos valermos de nosso patrimônio biológico e organizar novos modos funcionais de viver a nova realidade mundial.
A Análise do Caráter e a Função do Orgasmo, centrais na teoria e prática reichianas, atendia às necessidades das formações subjetivas produzidas no capitalismo durante seu estado de industrialização. A repressão da energia sexual e seu subseqüente reinvestimento no caráter, com o comprometimento da liberdade orgástica, a neurose, era um assunto da sociedade industrial de modelo patriarcal com seu modo de produção baseado nessa maneira edipiana de operar as relações reprimindo, autoritariamente, a libido. A organização do caráter rígido desse corpo autoritário foi o foco da atenção política e clínica de Reich com sua noção de couraças.
A coexistência com os modelos familiares certamente prossegue, entretanto a estruturação do sujeito passa a ser regida mais evidentemente por outras forças mais amplas e gerais. Com esta nova conjunção de interesses de mercado e de grandes corporações, agora fundidas internacionalmente, não mais a repressão, mas a falta passa a ser central.
Essa ênfase na repressão deve se tornar então o alvo da descontrução a ser operada pela compreensão da estratégia capitalística como captura do desejo e estimulação da perpétua falta de algo que nos preencheria e completaria. As imagens e a mídia passam a desempenhar o papel principal, como veremos adiante.
No início dos anos 80, começamos a ter acesso a idéias sobre o capitalismo contemporâneo, trazidas por Guattari, cujas visitas ao Brasil nos contaminavam com um sentimento spinozista de imanência e potência da vida se fazendo. Mesmo que não se mergulhasse profundamente no seu estudo, respirava-se com ele uma nova realidade emergindo, sobretudo levados por uma nova alegria com o fim da ditadura e a chegada dos novos ares do PT que nascia.
Mais adiante, nos anos 90, as noções de multidão como visão da nova realidade social que se apresentava num mundo já então inteiramente globalizado, trazida por Toni Negri, acentua nossa experiência existencial como molecularizada, fragmentária, em luta pela auto-organização e conectividade dentro dos novos modos de vida minoritários e trabalho desvinculados do emprego e das familias em seus devires. Uma nova estratégia social e corporal se faz necessária para que se efetue a nova luta.
A velocidade do capitalismo contemporâneo, à luz dessa visão, torna evidente os corpos e seus mundos formando-se e reformando-se, continuamente, segundo regras coletivas muito precisas.
Esses filósofos se referiam a essas regras como a produção social de modos de subjetivação que, agora, eram desenvolvidos pelo mercado, no interjogo de poderes, valores e interesses comerciais, como modos selecionados de tomar forma. Essa era uma revelação.
Mas prosseguia com grande frustração, a necessidade de um conceito de corpo enquanto processo biológico autopoiético que se acompanhasse de uma prática intimamente conectada com o processo de produção de corpo, parte de um auto-gerenciamento do processo de nossas vidas no mundo, que honrasse as leis mais primárias do vivo. Estou falando de uma necessidade de contemplar o corpo dentro de uma compreensão evolucionária como solidificação de comportamento.
Falando na primeira pessoa
Entre 85 e 92, a questão de uma nova posição na clínica, no ensino e na vida coloca-se para mim. Após ler o recém-publicado “Anatomia Emocional”(Summus), precisamente em 86, descubro seu autor Stanley Keleman e me aproximo de seu conceito de processo formativo. Essa leitura funcionou para mim como um satori. Com ele, pude, finalmente, acessar um conceito visual e encarnável do corpo como um processo que se estendia dos inícios da biosfera deste planeta, produtor e produzido por processos físicos e sociais, canalizando e secretando a si mesmo como uma força protoplasmática, continuamente, através das forças biológicas presentes em cada vida em particular, gerando e sustentando ambientes físicos e sociais como resposta a uma necessidade inata conectiva e formativa. Todo o meu movimento em direção a Keleman, um verdadeiro pensador contemplativo ocidental de tradição pragmatista e darwinista, americano, gestado na cultura do corpo novaiorquina dos anos 50, alternativa também para visões budistas que se difundiam, veio, certamente, da insatisfação com a visão caráctero-analítica, mas, principalmente, da minha dificuldade em encontrar uma operatividade corporal precisa nas concepções que visitei de metaestabilidade em Simondon, de corpo sem órgãos em Deleuze, bem como de autopoiese e inação em Francisco Varella, ideias que me iluminaram e contribuíram para meu afastamento das cartografias reichianas.
Foi muito feliz a minha escolha por Keleman. Em seguida, comecei a cuidar da tradução de seus livros, a me corresponder com ele e, finalmente, em 1992, a freqüentar seus workshops em Berkeley, Califórnia. Esse contato seguido que durou 15 anos fui um tempo suficiente para devorá-lo, digeri-lo e assimilá-lo… antropofagicamente, brasileiramente.Naquele exato momento, sonhei com a perda de uma criança na multidão e, logo a seguir, com concepção de um corpo velho personificado por Kazuo Ono, que aparece deitado numa posição fetal dentro de uma banheira cheia de barro.
A ilusão infantil da individualidade estava indo embora dando lugar a um corpo recentemente concebido para formar maturidade, feito de multiplicidades e devires. Enfim, podia me identificar com um modelo de clinicar, pesquisar e ensinar, bem como com uma filosofia do corpo que me permitia pensar e agir como parte de realidades maiores.
As visões formativas de Keleman e sua metodologia
(Edição de um conjunto de idéias de Keleman a partir de seus livros, papers não publicados de seus seminários, do site www.centerpress.com, de notas de workshops, de comunicações pessoais, de muitos emails, de muitas conversas e trabalhos clínicos pessoais)
Ressoando para mim com o espírito imanente da caosmose também presente no jamesonismo de que Keleman se considera descendente, diz em sua linguagem biológica contemplativa, que vivemos dentro de um oceano orgânico, uma manta viva chamada biosfera e que, como sistemas vivos, nós, organismos, fazemos a mesma coisa que a biosfera como um todo: nos estendemos, nos encolhemos, formamos sub-organizações, exatamente como o unicelular. Este é o modo pelo qual nós cultivamos conexões com o mundo e formamos também conexões internas de subsistemas do self. Somos móteis e pulsáteis, e a evolução nos dotou de um sistema cortical voluntário cujo esforço mobiliza o pulso vivo do corpo para fazer crescer mais conexões sinápticas. Não apenas em situações reais que requerem de nós o acolhimento e organização de respostas vivas, podemos, e devemos, praticar essa operação na clínica e como um exercício de si.
“Se usarmos o esforço voluntário, necessariamente estaremos criando uma cadeia comportamental, isto é, uma acumulação de massa crítica de axônios fazendo que se produza uma memória anatômica”.
“Com esta prática, aprendemos a diferenciar e maturar nossa corporificação herdada da espécie através do fortalecimento e da formação de conexões sinápticas. Isso intensifica e vivifica a experiência do si mesmo.”
“Repetir ações voluntariamente, como trechos de comportamentos anatômicos é a fase inicial da formação de novas conexões neurais através do fortalecimento de um continuo feedback de contato intra-organísmico com diferentes intensidades e amplitudes.”
Para Keleman essa é a fonte primária da organização da experiência como forma somática. Afirma que “o esforço voluntário cortical-muscular estimula o crescimento de axônios e esses axônios vão formar uma estrutura conectiva, as sinapses, conectando a parede do corpo ao córtex.” Assim cérebro e músculos trabalham juntos.
“Na medida em que retemos, por momentos, voluntariamente, uma forma, uma expressão do nosso fluxo comportamental de ações e reações aos acontecimentos, internos e externos, fazemos um recorte muscular distinto, um engrossamento ou afinamento da parede do corpo, com seu pulso excitatório único e, consequentemente, com sua expressão única, sua conexão única com o ambiente, sua única experiência”.
Esse é o primeiro dos 5 passos da sua Prática de Corpar (Bodying Practice) que acompanha sua visão formativa do crescimento de cada corpo em particular ao longo de uma vida, através da qual gerenciamos e praticamos o voluntário sobre o involuntário, na operação de produção de diferenças sobre as formas recebidas, seja da evolução, seja da maturação somática, seja das identificações sociais, seja dos reflexos de defesa às intensidades intoleráveis, seja das emoções, seja dos modos de conexão. Com a Prática de Corpar, vamos reconhecer a forma somática presente de um comportamento e organizá-la muscularmente, operar micro-movimentos sobre ela e receber a brotação dos efeitos morfogênicos dessas ações sobre si, metamorfose em ato. A partir dessa auto-identificação com a forma somática presente, se a consideramos expressão e linguagem do vivo, estabelecemos uma experiência imediata de si sobre si mesmo, uma certeza imediata da presença ao acontecimento, uma verdadeira epistemologia do corpo. Estaremos selecionando no fluxo comportamental uma forma que é digitalizável na linguagem do pulso vivo das forças biológicas configuradas por aquele estado de forma, implicadas nesse ato singular de presença, captável pelo próprio sistema nervoso, sub-cortical e cortical, e, acrescentamos, que pode ser envelopada pelas palavras, as palavras do mar de palavras onde nascemos e vivemos, sendo também moldada por elas. Esse é o seu “plus” em relação a qualquer outro autor neste tipo de busca.
Em 1985, diz em sua linguagem absolutamente anatômica: “Quando alguém usa o esforço cortical muscular voluntário para fazer distinções na sua forma somática, está reorganizando a estrutura, fazendo mais camadas internas e mais conexões internas. Quando os padrões motéis dos comportamentos que emergem como respostas involuntárias ganham estabilidade e duração, o organismo experimenta alguma coisa nova tomando forma dentro de si”.
Para Keleman, “estar corporalmente presente é a tarefa mais urgente do soma”. Afirma, com isso, que encaramos todo o tempo problemas formativos e tentamos encontrar uma solução, isto é, organizar uma formatação do self que seja funcionalmente única, nossa como resposta aos acontecimentos. E isso requer esforço volitivo sobre o soma.
O córtex influencia as respostas corporais. Através deste processo, cérebro e corpo formam um sujeito-objeto, uma relação subjetiva-objetiva. O cérebro e o corpo tecem um self pessoal a partir do corpo herdado, um corpo que não existia antes. “As consequências disso são imensas, uma vez que tornam o corpo e seu comportamento uma entidade pessoal.”
Keleman usa as idéias de reentrada neural do conhecido neurocientista Gerald Edelman para descrever esse processo como aquele em que o cérebro mapeia as ações do corpo e então faz cotas neurais nesses mapas. Então os mapas conversam entre si e compartilham informação. Este é o modo que, para ele, o cérebro estabiliza ações musculares.
E Keleman, alargando suas próprias idéias, diz que “quando há um novo comportamento, um novo padrão de ação, o cérebro tem que fazer muitos novos mapas neurais.” Assim, na Prática de Corpar, ele usa esse processo neural de reentrada inato para recombinar comportamentos e estabilizá-los.
O portencial morfogenético, ou a metamorfose, para Keleman não um ato de fé ou poético, mas uma compreensão com um manejo pragmático da vida tal como se configura na anatomia vivida por cada corpo.
Podemos roubar-lhe essa formulação maravilhosa e colocá-la a serviço da tessitura coletiva de redes de todo tipo. Keleman não chega nem quer chegar a essas consequências por não considerar, a partir de sua concepção de política, o tecido social tal como fazem Deleuze, Guattari, Toni Negri e outros que pensam esse oceano planetário de um modo imanente e radical.
Toni Negri: nós, a multidão
Edição de “Em direção a uma definição ontológica de multidão”, de 2002, com o qual me misturo.
Toni Negri faz afirmações preciosas que permitem que nos orientemos na nova paisagem social e das quais nos utilizamos aqui para operar essa ampliação do pensamento formativo de Keleman.
“Pessoa é uma idéia moderna e multidão uma ideia pós-moderna”
“Multidão é um todo de singularidades.”
“O pensamento da modernidade opera de dois lados: por um lado abstrai a multiplicidade de singularidades e unifica no conceito de povo, por outro lado, dissolve o todo das singularidades que formam o todo da multidão numa massa de indivíduos.”
“A multidão é sempre produtiva e sempre em movimento, se constitui e constitui a sociedade produtiva, cooperação social geral para a produção.”
“No conceito de multidão, a noção de exploração será definida como exploração e boicote da cooperação entre singularidades, não apenas entre indivíduos, mas, sobretudo, na exploração das redes que compõem o todo, atacando e moldando a sua conectividade.”
“A multidão é um conceito de potência que produz por cooperação. Esse poder não apenas deseja expandir, mas acima de tudo deseja tomar corpo.”
“A multidão é um agente social ativo, uma multiplicidade que age, não uma unidade como o povo que vemos como algo organizado. É de fato um agente ativo de auto-organização.”
“Evidencia-se o trabalho cooperativo vivo como uma revolução real, ontológica, produtiva e política, que pôs de cabeça para baixo todos os parâmetros de “bom governo” e destruiu a idéia moderna de uma comunidade que serviria para a acumulação capitalística, agora são apenas interconexões processuais para ações criativas”
“Os dispositivos para produção da subjetividade que encontram na multidão uma figura comum apresentam-se como uma práxis coletiva, sempre atividade renovada e constitutiva de ser.”
“Quando consideramos corpos, não apenas percebemos que estamos cara a cara com a multidão de corpos, mas percebemos que cada corpo é uma multidão, interceptando a multidão, cruzando a multidão com a multidão, corpos se tornando misturados, híbridos, transformados, mestiços como ondas do mar, em perene movimento e transformação recíproca.”
“A metafísica da individualidade ou da pessoa constitui uma mistificação da multidão de corpos. Não há possibilidade de um corpo estar sozinho. Isso não pode nem ser imaginado. Quando um homem é definido como um indivíduo, é considerado como uma fonte autônoma de direito e propriedade. Mas o si não existe fora de uma relação com o outro.”
Vale a famosa afirmação de Spinoza “Nunca poderemos saber aquilo de que um corpo é capaz”. Então multidão é o nome da multidão de corpos. Lidamos com esta definição quando enxergamos que multidão é potência. Entretanto, o corpo como processo corpante (bodying process) da realidade deve andar junto com a compreensão do processo de constituição de multidão. Devemos, portanto, reconsiderar esta discussão do ponto de vista do corpo, da constituição do corpo. Com Negri, devemos sempre ter em mente que a multidão é um todo de singularidades traduzíveis em termos de corpo. Do ponto de vista do corpo existe apenas relação e processo. O corpo é trabalho vivo, portanto, expressão e cooperação, portanto construção material de mundo e história.
Multidão é potência, genealogia e tendência, crise e transformação, portanto sempre levando à metamorfose dos corpos. A multidão é a multidão dos corpos. Ela expressa poder não apenas como um todo, mas também como singularidade. Isso aponta para a necessidade de aprender o como do moldar-se a si mesmo, sempre em novos modos de funcionar em conexões e ressonâncias presentes. A multidão honra a qualidade auto do vivo, sempre em direção a realidades que ainda não existem.
Na multidão, à revelia de Keleman
Remeter-se à biologia tal como é compreendida hoje nos ajuda a perceber que a organização do vivo é molecular e em contínua auto-produção e conexão, exatamente como a multidão. E é com esse sentimento de oh! que devemos nos aproximar dessa visão, não com um olhar cientificista.
Através de Keleman, realizamos que há um oceano protoplasmático formativo, uma multidão molecular, canalizada por esse corpo feito de tubos dentro de tubos descrito na Anatomia Emocional, a partir do qual processos corporais individuantes se formam a si mesmos, gerando membranas particulares temporárias de si mesmos a partir de um constante diálogo entre o corpo e seu cérebro como materialização do vivido.
Esta visão de uma realidade oceânica pode ser estendida à realidade contemporânea ao ser considerada, tal como se tornou visível hoje, como campo comum planetário de corpos e modos de moldá-los em suas conexões com outros corpos em processos sociais. Cada corpo é uma multidão sempre canalizando e processando ambiente, sempre em relação a outros corpos. A ideia de singularidades está aí. E de metamorfose também.
A visão formativa de Keleman de corpos e seus mundos é tão similar e tão diferente ao mesmo tempo da concepção imanente.
Na floresta negra de seu mundo, o homem formativo cultiva seu corpo, seu mito e sua intuição poderosa com as forças autopoiéticas, dentro do trabalho, da criação, da família, dos amigos próximos, brilhando intenso longe da contaminação do mundo, ao mesmo tempo em que o influencia.
Essa concepção personológica resulta de fortes raízes heiddegerianas e democráticas. Como transpor, aplicar essa visão de sujeito somático em constante produção para um romance que não seja apenas familiar ou mesmo democrático, mais seja, sobretudo, histórico-mundial em rede, tal como se apresenta hoje? São outros problemas a serem formulados, outras estratégias, e, sobretudo, outras lutas a serem travadas.
O reflexo da imitação e o reflexo do susto: onde a porca torce o rabo.
No reflexo de imitação, o corpo contrai e expande instantaneamente face a qualquer objeto, situação, qualidade, qualquer coisa, como efeito da atenção, imitando-o para saber em si mesmo o que é aquilo. Isso é a percepção do não-self e ao mesmo tempo uma espécie de fagocitação de formas. Através da repetição dos padrões motores dessa forma, ela pode vir se tornar nossa.
O reflexo do susto, por sua vez, é uma resposta organísmica para lidar com situações de emergência ou de ameaça ou de desafio de fora ou de dentro do organismo. É um processo complexo que começa com respostas reflexas simples a intensidades excessivas e envolve uma predisposição em direção a formas mais complexas dependendo do tempo, da fonte, da duração e da intensidade do desconhecido.
Esta resposta destina-se a ser temporária. Quando o perigo passa, o organismo volta ao normal. Entretanto, esta mesma resposta pode se tornar um estado habitual de tal modo que sua organização permanece à medida que nos movemos de um evento para o outro. Torna-se um padrão somático contínuo.
Padrões somáticos, sejam disfuncionais ou funcionais, são processos de auto-percepção, um modo de sentir, agir, estar e conhecer o mundo. Eles afetam todos os tecidos, músculos, órgãos e células, bem como pensamentos e sentimentos. Eles são mais do que mecânicos, eles são uma forma de inteligência, um contínuo de auto-regulação.
Diz Keleman, em 2007, “Os padrões são um fenômeno das camadas e tubos da arquitetura somática e afetam o organismo como um todo. Eles são intrínsecos e envolvem estados musculares da ponta dos pés ao alto da cabeça. Músculos e órgãos não estão apenas contraídos ou afrouxados, eles estão organizados em uma configuração comportamental que é sempre conectiva com os ambientes e corpos.”
O empobrecimento da biodiversidade subjetiva: nosso alvo.
As visões formativas de Keleman nos apresentam um modelo do soma que, acopladas a uma visão ecosófica, pode ser visto como um lugar, um lugar vivo, uma arquitetura evolutiva viva nos sistemas da biosfera e nos redes humanas.
Mas esse organismo, o nosso, tem a possibilidade muito mais rica do que qualquer outro organismo vivo, de contínua autoconstrução com elementos moleculares daquilo que é trocado com os ambientes, sejam eles elementos físicos, sentidos, comportamentos ou imagens.
Hoje, os reflexos do susto e da imitação se espalham globalmente, de uma maneira nunca vista, como um vírus, através das redes de comunicação, sobretudo de imagens, sejam notícias ou modelos de comportamento, que agora nos envolvem a todos.
Cada camada do soma requer tempo formativo e ambientes confiáveis para formar a si mesmo no devir e operar sobre a criação de diferenciações que nos conectam funcionalmente com os ambientes da rede global, próximos ou distantes, dos quais hoje somos parte, tanto localmente como de uma maneira geral. É justamente sobre esses tempos formativos e ambientes confiáveis que as estratégias capitalísticas incidem com seus efeitos malignos.
As formas embriogenéticas, as formas constitucionais, as formas do desenvolvimento, as formas de autoproteção, de ataque, de emoções, matrizes de gestos e ações, tudo emerge da profundidade do oceano formativo em cada organismo e dispara no momento certo a partir da sabedoria ancestral do soma. Essas formas, entretanto, já emergem num mundo global, pós-moderno, capitalista, regulado pelo interjogo de poderes e valores que as capturam e canalizam para dentro de redes de sentido imediatamente, moldando-as e modelando-as somaticamente, não apenas de um modo incorporal.
Cada nova forma biológica que emerge a cada momento, na continuidade de cada corpo humano é imediatamente ameaçada por forças de exclusão e imediatamente encontra à sua disposição formas e modos de funcionamento pré-fabricados, testados pela seleção do mercado, manipulados por pesquisas de opinião e suportados por tecnologias criadas pelas mentes mais brilhantes.
Essas formas moldantes todas estão em volta de nós, preenchendo todo o espaço da nossa percepção, oferecendo-se para produzir em nós a ilusão de inclusão neste mundo. São formas que não apenas modelam nossa forma somática e existencial, mas nosso desejo de futuro e nossas conexões.
Elas são as “fast forms”, como o “fast food”, enganadoras para nossa fome de viver, elementos para serem usados na construção de novos modos de existir, que somos forçados a agregar diante da desagregação súbita e contínua de modos de ser e de existir, efeito de fragmentação do reflexo do susto sobre nós como resposta biológica à velocidade excessiva e à ameaça vertiginosa de exclusão gerada pelo capitalismo global. O ambiente global como vemos não oferece tempos formativos nem ambientes confiáveis, atacando continuamente a agregação e conectividade nos corpos.
Essas ameaças são intensificadas por imagens continuamente bombardeadas pela indústria de comunicação de massa, imagens de inclusão, prestígio, segurança e felicidade lado a lado com imagens de exclusão, privação, violência, perda de propriedade e existência social, para não mencionar a perda da vida, que constantemente nos aterroriza. Por um lado o reflexo do susto, por outro o reflexo da imitação, são continuamente disparados. O tempo instantâneo do mundo global não nos dá tempo de formar vidas que sejam resultantes do processamento na usina organísmica de uma vida em particular, e nos catapulta em direção às soluções fáceis oferecidas pelas “fast forms”. Elas todas estão à venda. São objetos e serviços de todo tipo que, na verdade, são bordas subjetivas, modos de morar, vestir, relacionar, pensar, imaginar, amar, desejar, funcionar, produzir, gerar histórias de vida. Elas nos configuram e nos conectam a processos maiores. Estes modelos de existência têm a característica de serem facilmente assimiláveis. Elas, aparentemente nos poupam esforço, tempo e angústia de compor nossos próprios menus de ser e viver no mundo a partir da digestão necessária dos acontecimentos. E vêm junto com uma operação poderosa de marketing a qual nos faz acreditar que consumi-las e nos identificar com elas é essencial para configurar nosso território que continuamente se desmancha na velocidade da informação e dos novos acontecimentos. Esse é, aparentemente, o único modo de pertencer à rede planetária e evitar o risco físico ou social de morte, dada à desconexão com os processos de continuidade da vida.
Sob o terror, é ativado o reflexo de imitação.
O alto nível de atenção mobilizado pelas técnicas de comunicação alimenta o nosso potencial de identificação com as fast forms, as quais, por sua vez, alimentam o funcionamento dessa máquina modeladora de sentidos nos corpos, o que se tornou uma das principais forças na circulação de valores do capitalismo contemporâneo.
Essas “fast forms”, paradoxalmente, têm a característica de confirmar a nossa falta de auto-referência e o nosso desamparo, nos tornando dependentes do seu consumo compulsivo sempre em busca do alívio anunciado em relação à nossa constante angústia de existir.
A menos que nós possamos reverter a situação.
O pensamento e o método formativo a serviço de uma micropolítica
Mas para produzir uma operação realmente individuante, necessitamos rever nossos conceitos sobre corpo, de como o processo de produção de corpo acontece, contemplar através de que interjogo de forças biológicas e sociais um corpo modela o seu próprio processo formativo e aplicar pragmaticamente esse conhecimento em nossas vidas.
Há mais de dez anos, Keleman me escreveu uma nota pessoal que agora edito: “o processo vivo tem total investimento na continuação da corporificação mesmo. Por esta razão, ele está em constante diálogo consigo mesmo e este diálogo é sempre sobre o que fazer a respeito da sua situação imediata. O corpo fala através de sensações, sentimentos, motilidades. Entretanto, ele necessita falar de volta consigo mesmo de tal modo que ele possa influenciar o seu comportamento. Assim, o corpo tem o poder de influenciar a si mesmo, moldando a si mesmo em ações, inibindo a si mesmo ou agindo em relação a si mesmo. Ele faz isso através de um elegante sistema de feedback a que chamamos cérebro. O corpo organiza a si mesmo para falar consigo mesmo, secretando para si mesmo esse órgão que é capaz de receber de volta seus padrões de ação e falar consigo mesmo a respeito deles. Isso significa que há sempre uma relação do corpo com ele mesmo, mediada pelo cérebro.
Esta relação ocorre do mesmo modo como o corpo regula seu próprio metabolismo, seus movimentos e motilidades, o modo pelo qual ele altera e regula as formas de suas expressões. Isso revela que o assunto principal do corpo não é apenas sobreviver, mas sobreviver através de uma relação consigo mesmo”.
(Keleman, 1996, e-mail pessoal)
Evidentemente, a vida e a evolução não nos deram esta herança maravilhosa porque nós somos especiais individualmente, mas porque esta herança nos permite aumentar a força e a diversidade dessa mesma herança – em nós e no pool da vida. Entretanto, já sabemos que o capitalismo contemporâneo e a violência inerente ao seu funcionamento agem contra isso, tentando constantemente capturar este poder da vida e torná-lo consumidor de imagens, das fast forms, perversamente exercendo a ameaça de exclusão com sua dinâmica concentracionsta, atacando nossas reais conexões com o que compõe com nosso processo formativo, levando à eliminação das diferenças, conduzindo à homogeneização e consequentemente ao enfraquecimento do pool das subjetividades.
Um combinado: a prática cartográfica e a prática do corpar
Cartografar essas paisagens sociais mutantes, das quais nós somos parte, tanto global quanto localmente, de acordo com os ensinamentos de Guattari, significa descrevê-las em detalhe, acompanhar suas mutações e velocidade de fluxos que as cortam e reconhecer as genealogias do corpar, em cada ecologia, detectando,no caso, as espécies de “fast forms” que infectam esses ambientes, enfraquecendo sua potência formativa. E, então, descobrir possibilidades e estratégias para trabalharmos sobre elas.
Com a “prática de corpar”, o grande segredo da evolução escondido dentro de nós para proteger a vida contra o roubo daquilo que nos permite continuar produzindo diversidade se revela. A atitude nessa prática é meditativa e, ao mesmo tempo, ativa sobre si.
Aplicando-a às “fast forms”, podemos identificar as configurações que nos capturaram(1º passo), reconhecer sua anatomia, seus limites, suas forças e tendências(passo 2). Utilizar então os micromovimentos sobre as superfícies somáticas da forma, para então intensificá-las e desintensificá-las, através de micromovimentos sobre as bordas da forma, em pequenos incrementos (passo 3). Aí, descansamos. Como resposta, emergirão da profundeza formativa do organismo, como um sonho organísmico, esboços de um novo contorno subjetivo.
A seguir, repetiremos muitas vezes essa operação. Tentaremos solidificar e encarnar essa nova forma através da definição das paredes corporais e suas subpartes. Ao ativarmos essa operação formativa, estaremos tratando ao mesmo tempo da despotencialização gerada pelo o reflexo do susto que deu lugar para que as “fast forms” nos parasitassem e regenerando o reflexo da imitação para que preencha sua função originária no reconhecimento dos ambientes.
Vemos como, através dos mencionados micromovimentos das superfícies identificadas e configuradas muscularmente, seremos surpreendidos por novas formas mais atuais, conectivas e eficazes como recombinações e mutações recicladas e revitalizadas de moléculas das “fast forms” (passo 4). Finalmente, trataremos de estabilizar as diferenciações e testar sua funcionalidade em novas paisagens de sentidos e conexões (passo 5), estabilizando-as muscularmente e conectando-as ao fluxos do presente.
Uma clínica e uma educação que lidam com a subjetividade somática, hoje, têm que ser compreendidas como uma micropolítica, um modo de sustentar territórios de criação de corpos singulares, zonas dentro das grandes redes, resistentes à aceleração e sedução da sociedade do espetáculo, que, ao contrário do movimento geral, constituem a si mesmas em zonas de lentificação no tecido social.