Palestra na Sociedade Brasileira de Análise Bioenergética
Regina Favre apresenta sua trajetória e o conceito de biodiversidade subjetiva, eixo de sua prática clínica e de seu trabalho atual no Laboratório do Processo Formativo, em São Paulo. A partir de 2001, em sucessivos seminários teórico-vivenciais, o pensamento e o método da Anatomia Emocional, do americano Stanley Keleman, foi sendo amplificado.
“Depois de 15 anos de estudos, confrontei a posição apolítica de Keleman e comecei a formular o conceito de biodiversidade subjetiva, que considera o nosso funcionamento em rede. Segundo a visão formativa kelemaniana formamos corpos e vidas, a partir do herdado e do vivido. Mas, penso que hoje vivemos em uma realidade global e necessitamos de uma visão que considere as diferentes ecologias físicas, afetivas, cognitivas e sociais, das quais somos parte e produtores. Mais que indivíduos, somos canais em torno dos quais se tecem sujeitos corporais continuamente. Nessa perspectiva, a biodiversidade não diz respeito apenas à natureza, mas às respostas, linguagens, formas de comportamento e aos ambientes que somos capazes de gerar. Isso não tem nada a ver com o individualismo. Temos a capacidade de produzir diferença no inato e nos modos sociais de constituir sujeito. Esse é o trabalho com a biodiversidade subjetiva, sempre apoiado nos princípios formativos da Anatomia Emocional.” define Regina Favre.
Para afastar-se compreensão kelemaniana moderna de individuo, Regina aproxima-se do filósofo italiano Toni Negri. Hoje somos multidão, multidão de corpos, com a imensa potência de trabalho vivo, cooperação, expressão e, portanto, construção material de mundo e história. Se no passado era o povo que estava na base da sociedade industrial e a luta era contra o poder disciplinar, atualmente, a luta é pela conexão e cooperação entre corpos na criação do que ainda não existe.
Não basta desejar cooperar. Cooperação é o efeito da maturação dos modos de conexão. Essa maturação pode ser propiciada pelos recursos do método formativo e da visão clinica e filosófica da biodiversidade subjetiva. Essa visão original que cruza tantas áreas do conhecimento – filosofia, história social, política, neurociências, educação somática, anatomia evolutiva – é capaz de provocar diálogos instigantes. Como este a seguir, durante uma palestra. Acompanhe:
Clínica e micropolíticas
Platéia – Na clínica, fazemos o atendimento individual e fiquei pensando que isso é pouco, que estamos muito longe de atingir essa rede… (comentário de uma psicoterapeuta).
Regina Favre – É na clínica mesmo que pode acontecer essa maturação dos corpos em direção à necessidade do contemporâneo. O trabalho é pequeno mesmo. Não se trata de promover a grandiosidade da revolução, mas sim, as micropolíticas: cada macaco no seu galho fazendo seu serviço bem feito. Nossa questão não é mais com a repressão, como era na sociedade industrial, capitalista e patriarcal. Hoje, estamos imersos em jogos de força, com tremenda concentração de poder. Dentro da sociedade de consumo, do capitalismo pós-moderno, vivemos a captura do desejo. Atualmente, o poder boicota a cooperação entre os corpos. Não é mais uma questão de autoridade. O grande trabalho hoje é das conexões dentro da multidão, de modo a permitir essa interconexão, para além de classe social ou hierarquia. É a conexão entre os corpos que pode produzir o futuro.
Capitalismo, apavoramento e ilusão
Platéia – O que impede a conexão dos corpos?
Regina – Vivemos completamente rodeados de modos e formas a serem adquiridas, consumidas, que nos oferecem contornos subjetivos prontos, com os quais tentamos nos estabilizar na velocidade dos nossos dias. O mundo é totalmente “midiatizado”. O tempo todo estamos expostos a informação e notícias que assustam tremendamente as pessoas. O que acontece nos corpos no estado de apavoramento? Somos tomados pelo reflexo do susto. Essa resposta em bloco imobiliza. Aquilo que é mostrado no noticiário fala de situações de exclusão – doença, crise, envelhecimento, violência, miséria. Ao mesmo tempo, essa mesma mídia pós-moderna anuncia produtos e mais produtos, que não são apenas coisas, são estilos de vida, contornos existências vendáveis que prometem inclusão. No mesmo instante que compra-se o produto, que supostamente aplacaria essa angústia, a desagregação de si prossegue e a corrida assim torna-se infinita, alimentando o capitalismo. Nesse jogo de forças, as pessoas são mobilizadas a sempre reconfigurar a ilusão. Os vínculos criados a partir dessa “modelização existencial” não funcionam e bloqueiam, reafirmando o desejo sempre de modo individualista. Essa conexão só pode ser restabelecida quando é possível uma maturação dos modos vinculares, que vem da real maturação do modo de funcionamento afetivo dos corpos. Isso permite a produção da diferença e, portanto, da biodiversidade subjetiva.
Platéia – Esta é uma visão otimista… poder se movimentar nesse mundo… Isso dá um alívio…
Regina – Sim, esse trabalho e o conceito de biodiversidade subjetiva é otimista e se contrapõe ao medo gerado pelas imagens a que somos expostos incessantemente.
Co-corpar
Platéia – Queria saber sobre o co-corpar a que você se referiu…
Regina – Hoje, não podemos mais pensar que no mundo contemporâneo a narrativa seja apenas familiar. A narrativa atual é histórico mundial. É necessário navegar por essas redes de relações, sem perder de vista que os corpos se conectam, do mesmo modo que as formas vivas mais simples são conectivas. O corpo é modo de funcionar, na evolução, no crescimento, nas ligações que se estabelecem o tempo todo entre corpos que pensam, sonham, agem, sentem, formam. Na clínica é fundamental cultivar a tolerância somática à diferença, criar um corpo com organização somática tal, com tal diferenciação, que possa tolerar e, mais que isso, conectar-se com as diferenças. Nessa prática, nós produzimos algo, você e eu, por que eu co-corpo com você.
Reportagem e edição: Liliane Oraggio
Foto: Lucia Freitas